quarta-feira, 30 de junho de 2010


Poema De Doer

entre a inspiração profunda e o suspiro desiludido,

Começa... do nada, surge inesperado, do vazio
Para um vazio visível e torna-se real para dentro,
Sente-se, mesmo que noutra carne, de outra forma,
Sente-se, apesar de não se sentir de verdade.
Não tenho nada, só a revolta afiada dos anos inúteis,
Para entregar ao barqueiro na hora da minha morte, amén.
Enterram-se as unhas metálicas no peito desprotegido,
Bem fundo, até onde mora a gente, até onde se diz que o infinito chega,
Puxa-se tudo cá para fora, deixa-se a pingar, dor, dor brilhante ao sol, vermelha,
Chamando as moscas sádicas de asas de vidro, num postiço de morte acidentada.
Onde está o que está, se ainda está? Sou eu isto? Raios, afinal já não!
O cordão umbilical estica, estica, estica... e nós já de pé, de cabeça erguida,
A caminhar em frente, a caminho dos abismos, trocando passos com mortes,
Partilhando a cama com portas fechadas e becos sem saída,
Agarrando razões erradas, tomando sentidos duvidosos,
Desejando o equivoco e a ilusão, esquecendo a real raiz... e estica,
Sabendo que o limite chegará e não se sabe quando, quanto. Partiu!
Começa sempre, como um acordar e um vidro estilhaçado no meio da noite,
O vento a entrar e as cortinas assustadas aos gritos silenciosos e brancos,
Pálidas no reflexo do medo, onde não moram gatos a estas horas.
Enchem paredes de crânios, enchem paredes de anónimos,
Enchem-nos os crânios de nomes, encostam-nos os olhos à parede,
Passa-se a vida até que partiu, cegos e depois cegos e anónimos,
Numa parede qualquer, confundidos com a multidão... mas eu fui especial,
Dizem as órbitas vazias aos olhos que adiam a escuridão.
Deixa... não vale mesmo a pena abrir a porta e sair.
Mesmo que o sol te chame, é a noite que te espera.
Mesmo que um sorriso te cative, são as lágrimas que se despedem.
Não sei... mais café? O dia ainda está a acordar e já é tão tarde
E eu tão cansado e o mundo tudo o que eu fiz dele ao abrir os olhos
E eu que nem ser mitológico, nem costas largas para aguentar com o peso de tudo.
Morre-se, é isso. Morre-se, aos poucos, convencidos de que vivemos.
Fui morrendo até que morri. Viver só no momento em que dois corpos partiram o vazio,
Rasgaram o lençol negro que se abriu e um pouco de luz, durante tão pouco tempo,
Que se duvida se alguma vez naquelas órbitas vazias o mundo todo.
Albuns de fotografias que se fecham na eternidade,
Memórias que se despejam no pântano do esquecimento, onde moscas de asas de vidro,
Num roçar de rebentar timpanos, numa língua purgante,
Onde se confunde o cheiro do amor com o do sangue, da bílis, da carne queimada,
Da carne necrosada pela isquemia do tempo,
Dos sexos que se confundem num som viscoso, num ritmo que acelera, do esperma,
Da saliva, quando seca na pele salgada e suada ao longo da vida,
Enquanto crescem as rugas que chovem do tempo,
Do cabelo cinzento que surge da terra ao lado da enchada, um arrepio, da doença, do álcool,
Dos joelhos que rezaram para passar o tempo, o tempo que passa sempre,
O cheiro da humanidade despejada, depois do mundo se fechar para dentro, para sempre.
Agora deixo-vos, nas vossas palavras eruditas,
Que a simplicidade absoluta encerrará ao lado das minhas,
No escuro, onde tudo é negro, onde não interessa o brilho que se apagou.

30.06.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

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