Na Praia Com Nietzsche
para os irmãos Diamantino, o Macedo, o Pereira, o Ferreira e o Pires,
Numa casa de férias em Esposende com dezasseis anos a ser tanto, tão fresco,
Tanto espaço nestas mesmas mãos, golpeadas pelo tempo, pela morte dos sonhos
Mil e muitos poemas depois com outras tantas masturbações,
Na varanda, enquanto a camisa azul do dragão branco seca, um livro de Nietzsche
A tornar especial o momento, os amigos a ver televisão, outros na casa de banho,
Outros deitados a curar ressacas pequenas e na casa em frente um aniversário
Onde entram belas adolescentes que me descolam do interesse ridículo por filosofia
Aos dezasseis anos, ainda a latejar as últimas palavras da Crónica de Uma Morte Anunciada.
Nunca serei maior do que isto, nunca terei melhores amigos e nunca ninguém me conhecerá
Tão bem como eles, sem palavras necessárias, sem a confissão dos primeiros poemas,
Escritos quase às escondidas na mesa da cozinha, com muitas pausas e olhos
Fixos no horizonte que a janela permite, tão longe hoje, tão longe a varanda e a brisa do mar,
O farol e a insónia de uma liberdade de Abril, ainda com o sal na pele de um assalto à praia,
Com sede de uma primeira cerveja alemã que ficará para sempre, para o sempre que se tem,
Mitologia pessoal, marcos históricos que morrerão com o último cansaço,
Quando o corpo desistir de nós, e deixar as revistas pornográficas à beira do chafariz
Enquanto gente que não era do nosso mundo passava, com uma revista do Homem Aranha
Ao lado do Além do Bem e do Mal, que acabarei na vinha do meu pai,
Enquanto à volta tudo cheira a enxofre e primavera. Que monstro é este que me escreve,
Como se fosse dono das minhas memórias, dos meus momentos pequenos
Que me tornam o que sou? São os pequenos momentos que nos tornam grandes e diferentes,
As saudades secretas, os sonhos que aos olhos do mundo grande são pequenos e por isso não
Se mostram, mas trocava-se Paris, Londres, Estocolmo, Helsínquia, Amesterdão, Zurique…
Trocava-se tudo, tão estranho ao coração, por aquele Porto, aquela primeira vez, só nós,
Tão longe e tão perto, e lá fora o mundo nunca será o mesmo aqui dentro,
Não quando o candeeiro de rua às quatro e meia a iluminar a bola no parque de estacionamento,
Longe, perto da piscina, Nietzsche no bolso do casaco, o telemóvel cheio de mensagens de amor
Enviadas ao vazio, à desilusão por uma ilusão insuficiente que marcará por dez anos
E os que virão, se houver só mais uma vez, uma última vez, aquela varanda,
A brisa húmida do mar, melhor que qualquer cheiro íntimo, imaginando eu aquelas adolescentes,
Que hoje sei que não estarão tão convencidas do seu poder, deixei de guardar as palavras
E elas são muitas vezes o que os sonhos são, mas sem medo, que a morte está além de tudo
E virá quando vier, da forma que for, longe ou perto de Esposende,
Longe ou perto da memória quando ainda a entrar nos olhos, no nariz, na boca, na pele
Sempre pálida, adolescente, encobrindo uma alma de dezasseis anos até ao fim.
No próximo ano conhecerei Pessoa, o conterrâneo Torga e nunca imaginarei que eu também
Uma belga, o Vergílio Ferreira e nada será o mesmo, pois não estou só, nunca estive só, nunca estarei só.
Turku
04.06.2011
João Bosco da Silva
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