quinta-feira, 5 de janeiro de 2012


Crónica Dos Pés Frios



Enquanto os pés arrefecem, há quem esteja cansado de engolir o próprio sangue

E que há semanas, não come nada além dos glúteos que não têm

Mais onde se sentar a não ser a terra vermelha, mas os pés são teus,

O que os olhos te sentem não és tu, e nesta época de bombardeamentos

Constantes, de fins do mundo todos os dias, torna-se difícil mastigar devagar,

Saborear a dor dos outros, cai tudo inteiro no estômago virgem, o ácido não

Chega e tudo o resto se torna ácido, amargo, corrosivo, tudo escondido

Atrás de cores irónicas num cemitério individual, com um nome

Que tantas vezes nem se ouve, não se sente, o teu nome é eu, dizes tu,

Então temos o mesmo nome e asseguro-te que o meu sangue tem o mesmo sabor

Daquela terra vermelha onde outras mãos procuram a alma,

A mesma que recusei por ser mentira, a mesma que se cospe com sede

E nada mais a não ser um gesto ridículo de boca seca, aberta

Como a visitada pela morte, a última visita, a única visita em anos,

Naquela casa que tresanda a mijo, merda, bolor e esquecimento,

Onde tu morarás quando não souberes o que mais fazer da vida,

Depois de os filhos lavarem as mãos das fraldas dos filhos deles, depois

Da tua mulher ou homem finalmente se esquecer das suas/tuas traições,

Depois de não haver ninguém que te cubra os pés, que arrefecem

Ao mesmo passo que o coração abranda o seu ritmo cada vez mais pesado,

Corres a cortina e ainda vês alguém que arrasta um papelão, nota a tua

Presença, a única pessoa a fazer-te ser, apesar de teres ido comprar cigarros

Ao quiosque do centro, onde havia revistas com terra vermelha, jornais

Que vendem fome, morte, miséria e tu, com tanto frio para vender.



04.01.2012



Turku



João Bosco da Silva

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