No Tempo Das Cerejas Quando Chove
O cheiro da serradura, da erva cortada ao Sol, uma folha a
passar no rio,
O Verão de Vivaldi, o sabor daquelas primeiras cervejas num
dia de sede e cansaço,
Tudo o que nos faz fechar os olhos e nos arranca do agora
por um segundo que seja,
E nos leva de volta à inocência, à leveza, a uma tenda
atravessada no caminho dos
Sapos pequenos, aos sonhos antes de se apagarem, antes das
velas pelos avôs,
Ao tempo dos olhos da avó nas paredes, como os de deus que
seguem nos quadros
De Jesus com o peito aberto e um coração no esterno, e as
primas um enigma
Irresistível, assim como as cerejas um baú de pirata em cima
de uma árvore
Altíssima, as vacas um exemplo de paciência e estupidez, o
sabor doce do feno mastigado
Numa torre de fardos num palheiro, nas mãos o cheiro a
masturbação seca,
O cheiro a monte no cabelo, o cheiro a monte na pele, o
cheiro das saudades a monte,
Inspirar fundo a terra quente quando as primeiras gotas se
apagam no primeiro alcatrão
Da aldeia, no último dia de aulas, o relógio lento na
lareira em casa da tia, enquanto
O primo acabava o pão com manteiga, os dedos besuntados, e
agora os olhos azuis
Da nova geração, o meu corpo de dezasseis anos na fita
magnética das câmaras
Dos tios de França, antes de provar pela primeira vez cona e
Hemingway,
Deus levado pela corrente, como a inocência, como o exemplo
das vacas que pastam,
O sabor do vinho quando o avô dorme, o sabor da aguardente
quando o alambique
Foi vendido, o sabor dos salpicões quando se deixou de poder
criar porcos, os foguetes
Da festa quando o bidão a fazer de casota de cão vazio, as
revistas do homem-aranha
Em vez de gelados com o dinheiro para a festa, a manhã
depois da festa no tasco
Ao lado do quiosque das bandas desenhadas e dos gelados que
ficaram,
Com os dedos segurando uma chávena de café cheia de
aguardente e a lubrificação
De quem dorme comigo dentro, os estrelas e os satélites nas
noites que encolhiam
Tudo o resto, os livros que ficaram na lista e aqueles que
se intrometeram,
Os que se engoliram só para perspectivar, as batatas que se
apanharam da terra fria,
Se comeram, os dedos que se tiraram da carne quente e se
chuparam,
Os sonhos que morreram e assombram os sonhos do sono, com
beijos no pescoço
E unhas nas costas, e seixos e rãs e medos que se
ultrapassaram quando acordado,
O Inverno de Vivaldi, a dor de frio na ponta do nariz, o
cheiro da cera das velas no cemitério,
A cebola que fica no prato, o sabor metálico do peixe do rio
vivo, quase como do sangue
Das feridas nos joelhos das quedas de bicicleta, o quartzo e
a mica dos paralelos de granito,
Tudo o que nos faz fechar os olhos e nos arranca do agora
por uma eternidade que seja,
Aprender a ser areia numa ampulheta e esperar que cada grão
valha sempre a pena.
20.05.2015
Turku
João Bosco da Silva
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