Enquanto O Sono Não Vem
“de que serve o
passado, não temos a certeza se existiu ou nos deram imagens que amontoamos na
esperança de conseguir o que se chama vida.”
António Lobo Antunes
Já quase nada me comove, as mortes passam por mim e fica
apenas um nome a latejar
E um esforço em focar uma cara, confio que trago comigo o
essencial daqueles que são
Em mim e não me desiludirão mais, já quase nada me faz
engolir sem excesso de saliva
Na boca, uma criança que chora é apenas um aborrecimento, os
anos fazem disto,
O uso e abuso tornam tudo duro, deixam calo, no entanto uma
lata onde uma garrafa
De whisky há muito bebida morou, comove, bebi dela às
escondidas com o amigo
Dos olhos azuis quando ainda garoto, e dentro daquela lata
agora os tesouros da minha avó,
Que apesar de não reconhecer muita gente, me viu por trás da
barba e dos cabelos brancos,
E tu como é que andas com essa barba, não acreditando que eu
já trinta, naquela lata,
Cheia de amolgadelas e com ferrugem onde lascou a tinta,
tudo o que restou de uma vida
Modesta em posses, um crucifixo onde se lê, terra de Fátima,
numa capsula pequena,
Um rosário dado pela amiga que não pode ser ela porque
velha, um lápis amarelo staedtler
Mal afiado, usado para escrever o nome nos espaços em branco
dos jornais da região,
De onde me lê alto o título de notícias antigas, um jornal
mais que informação efêmera,
Conserva-os para treinar uma capacidade adquirida com quase
oitenta anos,
Na lata ainda, dois carrilhos de linhas, um preto e outro
vermelho e uma agulha que se perdeu,
Um molho de medalhas de santos que se tornou demasiado
pesada para andar ao peito,
Travessas para o cabelo, algumas sem dentes, um cartão com a
imagem da Senhora da Serra
E uma oração por trás com letra miudinha, dois elásticos
brancos que servem de ligas
Para as meias de vidro, e a família toda, fotos de gente que
ainda não era gente
E da que já não é, todos felizes, onde se esconderá a tristeza
e a miséria nas fotos de família,
O meu avô ainda não bêbado, ninguém doente, ninguém morto, a
vida ainda não cansada
De ninguém e ninguém cansado da vida, já quase nada me
comove, mas depois abre-se
Uma lata contra a dureza dos anos e aquele tão pouco, sendo
tudo, mostrando-me
O último esforço da memória em se agarrar aos objectos que
restaram, quando a vida
Uma paisagem longínqua por trás das costas, e naquele lápis
o mundo todo enquanto o sono não vem.
Turku
20/08/2015
João Bosco da Silva
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