Carta Ao Filho Que Nunca II
Lembras-te daquelas irlandesas velhas que trocavam gelo boca
a boca,
Entre desconhecidos, como se fosse sábado à noite num
inferno
Se os nazis tivessem ganho, já me perdi, o Johnny Cash
também,
O anel de fogo aperta e cada vez mais cremoso, cada vez sei
menos da vida,
Na altura pensava que estúpida esta gente toda, comigo lá
enfiado,
Hoje penso apenas que vivemos mergulhados em estupidez
E a cada golfada de ar à superfície é uma maldade,
Não queres ter filhos, perguntam, e penso que eu ainda não
estou inteiro,
Nunca estarei completo, quanto mais, não conseguiria mentir
A tanta pergunta inocente, olha, é o mundo que é assim, são
loucos,
Os outros, ou então sou eu que não consigo vestir o fato que
me querem impingir,
Ainda a cerveja não vai a meio filho, ainda tu não te
decidiste
Se virás do colhão bom ou do mau e enfias-me assim a lâmina
na ignorância,
Em três décadas que passaram num piscar de olhos, devo ter
passado anos
De olhos fechados, sabes, escrevi muitas coisas, não
exagerei em nada,
Mesmo assim, fecho os olhos, os punhos e parece-me que tudo
cheira
A cona, e é tudo fome, a minha, a dos outros, a de outros, a
de um por ele próprio,
Esta última a pior, é por isso que verás tantos sozinhos,
zangados,
Agarrados a copos, garrafas, lâminas, seringas, putas e
sonhos,
Entre uma música do Cash e do Sinatra, lembro-me das
irlandesas
Na ilha, quando tinha vinte e um anos e nadava em certezas.
Turku
21.09.2016
João Bosco da Silva
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