quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Uma Náusea no Elevador 

Houve tempos em que a mesa da cozinha fazia mais sentido 
E os versos surgiam enquanto na janela em frente o Sol acendia 
Os montes em despedida, preparando-se a geada para abrir a manhã, 
Sabia bem acordar apesar do aparente vazio dos dias, 
Mas esse vazio foi-nos tornando o que hoje traímos, 
Mais um gole, porque estamos perdidos, mais um suspiro, 
Porque a mesa da cozinha longe, e aquelas mãos capazes 
De aceitar tão pouco, hoje estranhas somando nadas 
Como cartas em castelos, estamos perdidos há anos, 
Pouco sentido se encontrou no caminho depois da última 
Gota de inocência ser trocada por mais uma direção errada, 
Tomada com a sede que a carne pede ao fogo a perdição, 
As galinhas eram uma companhia segura enquanto se ouviam 
Ao longe os garotos que esperavam o último autocarro 
Que os levasse às aldeias, deus morria, tudo era certo 
Na novidade que lhes pesava, as palavras pareciam dançar 
Como chamas, as páginas ardiam na fome da alma, 
Hoje todos os mares gelaram, a profundidade é algo impossível, 
Não há mergulho que resolva o cansaço de cada inspiração, 
Levamos a solidão aos olhos, o copo aos lábios, 
As memórias ao esquecimento, porque é melhor assim, 
Esquecer aqueles muros de aldeia e as mãos sem carne 
Que um dia passaram dias inteiros a meter pedra sobre pedra, 
Para que depois o tempo e os herdeiros lhes passem por cima, 
Nada dura tanto como os sonhos, no entanto à noitinha 
Já não se teme nada que a almofada possa revelar, 
Falar com um avô morto no tanque onde te tomaram na boca, 
Numa daquelas noites de verão douradas como a palha, 
Hoje nem as letras novas onde os dedos resignados pousam, 
Fazem qualquer sentido, o Big Sur espera, continuando a afogar 
Estrelas até ao fim dos tempos, a ponte Bixby Creek será mais 
Uma daquelas mulheres que se prometeram na língua dos gatos 
Para outra vida, quando nem esta foi realmente tua, 
Depois das andorinhas em Fevereiro, foi só um somar 
De lábios desencantados e gemidos secos, que é feito do pecado, 
Quando se tem certo o ar poluído da eternidade cega, 
Que diria Torga com dois tordos à cinta, se te visse, 
Com esse ar enjoado, esses olhos de ódio desencantado pela humanidade, 
Nunca fomos postos aqui para durar muito, só durar, 
O resto cabe a cada um iludir-se à medida do nome ou da sorte, 
Temo que isto vá acabar num atraso de uma carta que não terá resposta, 
Se ao menos as portas um dia abertas ainda pudessem 
Abrir-se novamente douradas, se ao menos ainda se encontrasse beleza 
Nas folhas que caíram no outono, além da beleza da morte como única justiça 
E igualdade, este mundo de plástico engolido pelos olhos inocentes 
De todos os que nascemos, todos os que fomos completos, todos, 
A estas horas tenho a alma pintada da mesma cor envelhecida da loucura 
Daquelas paredes do Conde Ferreira, um enjoo em lençóis quentes e vazios, 
Robert Louis Stevenson na mesa de cabeceira e uma náusea no elevador. 

Turku 

15.01.2020 

João Bosco da Silva 

Sem comentários:

Enviar um comentário