terça-feira, 31 de dezembro de 2024


 

Cem Anos de Solidão

 

Aos dezasseis anos li Cem Anos de Solidão,

Vinte e três anos depois vejo a série,

Com aquelas paisagens fantásticas,

Aqueles corpos como chocolate de leite e sal,

O mesmo realismo mágico, mas dado,

Sem esforço do imaginário, dou-me então conta

De que vejo tudo novamente, por outros olhos,

O limite da minha experiência,

É o limite da minha imaginação,

Hoje se relesse o livro, estou certo de que as paisagens,

Apesar das mesmas palavras, da mesma descrição,

Seriam outras, mais amplas, mas não necessariamente,

Mais extraordinárias, existia um espaço maior,

Entre a matéria que constrói os mundos imaginários,

Um trabalho de construção de raiz,

Agora cada vez mais, é uma construção de retalhos

Emprestados a ecos dos passos que demos,

Ainda bem que, aos dezasseis, não conseguia imaginar

A salgada perfeição dos seios de Úrsula Iguarán.

 

31/12/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

 

Enquanto Dormes

 

Enquanto dormes no meu colo, meu amor,

Que os sonhos te sejam leves e limpos,

O mundo continua demasiado humano,

Sujo e injusto, o progresso só tornou a maioria

Em insignificantes números, carne para canhão,

Contudo, com a tua mão sobre o lugar onde talvez

Ainda se esconda o meu coração,

Sinto que te sou seguro e por trás dessas pequenas

Pálpebras, o sonho decorre nesse teu mundo pequeno

E simples, que sejam borboletas, trevos no jardim da avó,

O raro sorriso do sol de inverno, gatinhos gregos,

Que nunca te contaminem os pesos e pesadelos

Que os homens aos homens se impõem,

Nascemos para poder pouco, meu amor,

A vida não tem sequer o valor da sua utilidade,

Nesta sociedade de gordos vampiros, buracos negros

Oligarcas, resta-nos um colo quente e um sono puro,

O sol e a promessa universal do derradeiro silêncio.

 

Turku

 

20/12/2024

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

 

Oásis

 

Trocar o azul turquesa por um charco verde

Onde coaxam as rãs e a tua carne viciosa,

Liras viscosas, confettis de papel higiénico

Atirado com a pressa furtiva de um farol

Que passa e mergulha na noite onde moram

Todos os desejos viscerais e verdadeiros,

Fosse eu sincero nisto tudo e comigo mesmo,

Seria o rei da pocilga, mas por delicadeza

Tenho perdido, também eu, a minha vida,

Tantas vezes a fome daquilo que se confessa

Apenas no silêncio de um vazio enorme,

E se absolve num suspiro resignado

De quem perdeu dentes para tanta fome.

 

19/12/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

Pedra no Sapato

 

Todas as manhãs acordo com uma pedra no sapato,

Com a boca seca de sonhos, no quarto um cheiro

Defunto das glórias que deixaram de ser minhas,

Uma sombra constante, dando a cor de perigo ao gelo

Que dará o acompanhamento aos passos arrastados,

Todos os dias a nudez fantasmagórica das bétulas

Me relembram a imagem que o espelho me cospe na cara,

Acumulamos tanto no que somos, para depois

Não termos força suficiente para tanta ausência,

Mais um verso não vem acrescentar nada mais

Que um vazio que ficou por não ser, dito nele mesmo,

Tocam-se com olhares quase vegetais, os que passam,

Tão anónimos que quase não existem verdadeiramente,

Nem um cheiro desperta as rupestres recordações,

Verões que como sonhos que se trazem ainda meio

Agarrados quando se acorda e se dá conta, uma vez mais,

Da pedra no sapato, da evidência estranguladora do hoje,

Só o cabelo cresce inversamente proporcional

Às possibilidades e brancos são os sonhos,

Como o futuro dos amigos que partiram para sempre.

 

Turku

 

18/12/2023