terça-feira, 29 de julho de 2025

 


Ainda Cá Andamos

 

A última vez em que li Kerouac, foi no Natal antes da pandemia,

Em Berna, num apartamento do outro lado da rua

Onde Einstein viveu, a casa da minha irmã na altura,

A última vez a família toda reunida sem os novos membros,

Se virmos bem, cada novo momento é, sem darmos conta,

Uma última vez de algo, a primeira vez em que li Kerouac,

O mundo era outro, os meus olhos tinham outra vontade,

Foi num verão quente finlandês de tempestades

E carregado de despedidas, sempre andei com os bolsos da alma

Carregados de despedidas e saudade, contudo, nunca preparado

Para as inesperadas traições da vida, passados anos a ouvir

As mesmas piadas sem gosto, histórias que se repetem,

Estarei rodeado de NPCs, aos dezasseis tinha momentos

Em que julgava ser o único ser pensante na terra,

Tendo apenas os meus livros como prova do meu erro,

Que ia comprando, trocando o dinheiro de sandes,

Que antes para as bandas-desenhadas, por livros

Que vinham com o jornal no quiosque do senhor João,

A última vez em que li Kerouac, foi reler, traduzido, o delirante

Big Sur, o meu favorito dele, agora se calhar, realmente,

Leio Kerouac pela última vez, nunca se sabe, as histórias repetidas,

De um viajante solitário, que uma poeta portuguesa me enviou,

Ainda cá ando, com uma sede para a qual já não tenho lábios.

 

 

Turku

 

21/07/2025

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 21 de julho de 2025

 


Cicatrizes de Verão

 

Foi num verão, longe, muito longe deste,

Contudo, ao sol deste verão, brilha,

Como uma memória, onde estará a ferrugem

Daquela bicicleta, que numa derrapagem

Na areia, mais uma vez me tatuou,

Para o sempre que uma vida dura,

O joelho, longe de casa, sempre,

Mesmo em casa, o que é casa a esta hora

Da vida, quando metade fora,

O futuro metade estrangeiro,

Nunca o que esperavam de mim

Naquele ridículo rectângulo,

Esta cicatriz no joelho, uma ferida

Em mil novecentos e noventa e quatro,

Quando a casa em obras, uma pressa de viver

E uma curva apertada para sempre,

A dizer-me que ainda sou eu, o mesmo,

Aquele garoto, longe, aquela tenra carne,

Ainda, esta pele de velho, com saudades

De tudo, vontade de tudo, menos do futuro.

 

Turku

 

15/07/2025

 

João Bosco da Silva

 


O Início Sempre

 

Já há algum tempo que não preencho um pequeno vazio

De incerteza e inutilidade, a ilusão de que um olhar

Realmente toca e nos reconhece a existência sofrida e faminta,

O sol nunca foi para todos na mesma medida,

Os sonhos são reflexos grotescos do tédio que levou

Mais um dia ao crepúsculo, houvessem ao menos montanhas

Onde claramente o astro rei se enterrasse

E não a ampla beleza de um irrepetível komorebi,

Andar devagar ou não, não interessa, o destino é sempre o mesmo,

Infinitas as escolhas, as possibilidades para um único e inevitável fim,

Um resultado que só de olhos fechados, sem respirar,

Nos parecerá tão claro e isto é só o início, sempre.

 

Turku

 

15/07/2025

 

João Bosco da Silva