Poema De Prazer
Com Bukowski no colo, a televisão a tagarelar numa língua que não reconheço,
Um daqueles programas para perder tempo, como se o tempo fosse excessivo,
Quando nunca chega, quando se aproxima do fim e deixa-se andar, deixa-se passar,
Porque amanhã é que vai ser, acabo amanhã, começo amanhã, não me apetece agora,
A vida passa e o livro a fazer-me peso para além das pupilas, que nunca mataram ninguém,
Mas já ajudaram, tiraram valor ao tempo, tiraram-me valor, mas sempre me senti melhor
Sendo um completo animal, sem tretas, sem palavras inúteis quando há dedos, desejo,
Excitação, erecção, um momento possível, um jogo de carne e fogo, mudo, gritado e gemido.
Com Bukowski no colo e um barulho de fundo quase hipnótico, perco-me deste tempo
E olho para o vazio, onde alguém me passa à frente, sem reparar, continuo, longe, de agora,
Em quartos estranhos, com cheiro a sexo e perfumes desconhecidos, abraçado por ritual,
Antes do pequeno-almoço acompanhado de um diálogo estranho entre duas mulheres
E uma delas ainda nos meus dedos que levam a chávena de café às mãos,
Devem estar a falar de mim, mas não interessa, direi que nos vemos na próxima semana
E esse será o meu último adeus, o karma apresentará a conta quando quiser,
Sempre dei o que podia dar de mim e por vezes nem uma ejaculação na pele suada.
Com o Bukowski tão morto e tão presente, tão real e tão cru, sabe-me a vida,
Sabe-me a sofás e gente nua, olhando a porta aberta enquanto se geme a medo, trincando
As almofadas sujas (de que outros encontros?), a boca seca que tenta fazer brotar
A fonte ruiva e deliciosa para a conquista de mais um corpo, pela madrugada fora
Até que de manhã, com fome e ressacado, a deixo ir para a esquerda, com o vestido sujo
Da minha imundice, a boca com o sabor da minha vontade, tão linda e loira e caracóis,
Um anjo que passei a noite a conspurcar, a explorar, ela sorri-me, agradece-me
E eu vou dormir para o lado de quem não merece um hálito daqueles à hora de almoço.
Com o Bukowski morto, velho para sempre, bêbado e sincero, aqui à frente,
Um diabo qualquer a falar longe (na televisão?), um carro de um namorado, que num mês
Um noivo, que em dez meses um pai e um suspiro de alívio e de desilusão, apesar de ter sido
Só mais uma descarga consentida, uma fome saciada, mais por ela, com aquela carne fogosa,
Pálida e de encher a boca e as duas mãos, com o dono do carro longe com os amigos,
Tudo o resultado de um desejo descoberto por uma frase simples como,
Quero fazer amor contigo, num caminho abandonado, numa folga de trabalho, contra o tempo.
Com o Bukowski nas mãos, tudo o que restou dele, como tudo o que restou de todas,
Uma memória, umas memórias, que se lembram com a mesma emoção com que se ouve
A televisão que se vê para passar o tempo, enquanto não chega a hora, a próxima,
O karma a pôr um travão, ou não, que no fundo tudo é natural, como não ter moral,
Tudo é passageiro, tudo nos deixa se não formos nós a deixar, só nós ficamos,
Nem vale a pena deixar marcas, a não ser umas palavras, para alguém que se aborrece com a vida,
Alguém que acha que ser poeta, ou ser libertino é ter uma vida cheia e feliz,
Alguém que é feliz e não o sabe, com a sua mulherzinha no colo, envelhecida,
Invejando outra vida além daquela que chegou ali, quando há tantas que ficam tão longe,
Gastam tanto tempo, com programas de televisão ridículos, porque o tédio aperta
E não se aguenta ver as horas a passar, sem passar por cima de alguém, dentro de alguém,
Sem ouvir alguém gemer a nossa presença e implorar a nossa existência dentro.
18.01.2011
Torre de Dona Chama
João Bosco da Silva
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