Anticristo
A cruz lá no alto, a pesar nas mãos que andavam para deixar cair deus, a procissão
Longa, até ao alto do monte onde uma capela, muita história naquele monte, de algumas
Lembro-me, porque já celebrava aniversários e fazia nascer novos dias à força de cerveja
E muitos cigarros, outras da idade do bronze com vestígios de algo mais real do que aquilo
Que as capelas representam, e a cruz firme nas mãos prontas para o destino,
Prontas para largar mais do que o que esperavam, menos prontas para abraçar novos sonhos,
Porque o futuro uma obrigação e ninguém gosta de ser obrigado, como ninguém gosta de
Morrer, a não ser nas noites em que insónias e uma uva passa taquicárdica a tornar
A almofada demasiado pequena para as recordações que pingam sem cessar,
Umas gotas de suor escorrem, uma pequena pausa, pousa-se a cruz um momento
E a mão a passar na testa, pálida, sempre pálida, e o que levava a cruz não era a fé,
Uma teimosia, nada parecida à que julgam ser a teimosia de deus morto e reconheço
Que Nietzsche me ajudou a sair, anda, anda, não és o único, não te convenças disso.
Como estará o paciente que ontem recusamos à morte? Às vezes custa-me tanto que tudo
Dependa de mim, mas não tenho sido tão mau a fazer o que não sei, tenho vivido até aqui.
Não sei exactamente quando deu o último suspiro, em mim, porque na verdade,
A existência de deus depende de cada um de nós e respeito, não compreendo, mas respeito,
Quem insiste em comprimir-lhe o tórax, alguns só o abanam, está aí, acorde,
Desconfio que foi na missa no coreto, naquele mesmo dia, olhei para o horizonte e lá
Longe, não deus, montanhas, a ligeira cor cinzenta da distância e um alívio no peito,
Quase um vazio e todas as palavras do padre me pareceram ridículas, sem significado,
A hóstia soube-me a hipocrisia, a faz lá o favor à gente, a não sejas o único,
Mas não durou muito mais, a cruz começou a tornar-se demasiado pesada.
Afinal, o paciente ainda por cá anda, graças a deus, hoje até veio a família visitá-lo,
Tão novo ainda, o olhar assustado do filho, para onde me querias ir tão cedo, deus é que sabe,
Deus é que manda, mas quem sabe é o coração, às vezes os pulmões, os rins,
Aquela coitada o fígado e é do que somos feitos, não de deus, acreditem, que nunca vi
Nada além de uma linha verde recta, em direcção ao infinito, uma hora e fizemos tudo
O que podíamos, uma cor púrpura que parece escorrer de uma palidez amarela,
Mas se for melhor que um anti-depressivo, tomem deus aos domingos.
Tentei mais uns tempos, minha mãe contente, os amigos também ajudavam à missa,
O padre era um bom amigo, porque chorou ele no funeral do pai se está tão certo de que além Disto melhor e há deus, não me parecia uma pessoa egoísta, desconfio que
Dos fumos na igreja, vento, o visceral embate da morte contra todos os dogmas religiosos não
Deixa espaço para certezas do incerto. A cruz lá no alto, a oscilar no cansaço de uma ovelha
Que se perdeu da alienação, olhou além da altura da cruz, a uns palmos da cabeça,
E afinal havia céu, à noite tanto céu, tantas estrelas, tanto que torna tudo dentro tão pequeno,
Um pequeno grão de pólen no infinito onde não cabe deus, dizem que é demasiado grande
Para isto tudo e prefere viver em cruzes, pastilhas de incenso, hóstias e água colonizada
De fieis, que espia e censura palavras, ideias progressiva, mas não uma guerras,
O cancro de uma criança que ainda nem palavras, e claro ainda não acredita nele,
Sem palavras não há deus, ele é o verbo e todas essas tretas todas que as montanhas levaram,
As estrelas incineraram e Nietzsche a dizer que sim com a cabeça com o peso do bigode,
Enquanto garotas, porque eu dezasseis, um homem, entravam na sacristia e eu feliz por ter
Uma desculpa para abandonar a cruz e a batina branca de acólito e deixar a hipocrisia a
Quem não gosta de olhar para o céu à noite e tem medo do infinito como do vazio
E quer fazer da vida uma sala de espera para a eternidade, de joelhos e olhar de vela mortiça.
19.10.2011
Turku
João Bosco da Silva
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