quarta-feira, 26 de março de 2014

Golden Axe

Uma tosta mista às quatro da tarde à beira maldição e o que queria mesmo era jogar
Golden Axe até aos olhos em bico, cinquenta escudos, era tão barata a felicidade,
Longe de putas e outras vendidas, hoje tão distante, não me vejo sorrir em lado nenhum
E o meu nome é ignorado como tudo o que é comum e silencioso, vendia a alma por
Um nome barulhento e um espírito ordinário, nem sei se hoje há jogos de futebol,
Nem li o último livro daquele que dizem ser grande poeta, fecho-me e ouço cá dentro,
Além dos ecos de todos os gemidos em forma de promessa, a música do Final Boss,
Tão longe se chegou há tantos anos para agora isto, uma tosta mista às quatro da tarde
Numa cidade que me desprezou tanto quanto o que me apercebi dos dias cinzentos,
Não falhei nem um, mesmo assim, não fui batido, meto mais cinquenta escudos,
Continuarei a saltar em cima da merda e a salpicar burgueses e donos dos direitos,
Engolirei todo o nojo e seguirei em frente enquanto espero, um dia, diz quem lá está,
Eu escondo-me na fome e na solidão, em páginas amarelecidas e no cadáver dos sonhos
Cobertos por pó e indiferença, sou o undertaker dos meus próprios desejos, enterro-me
Na solidão dos outros e trago comigo os murmúrios da única sinceridade de que são capazes,
Agora chega, isto não é Earls Court, lá fora está Sol e tudo é o fim de alguma coisa, vão-se
Acumulando pequenos-almoços tardios como poemas indigestos, vamos a mais uma tentativa,
Menos cinquenta escudos, o gordo tombará e o machado será dentro dele entre tripas e
Todas as palavras que calará, os melhores poetas são os que calam quando têm mais que fazer.

Coimbra

20/03/2014


João Bosco da Silva
Chá Verde E Bolachas

Sonhei contigo e com o teu imaculado desprezo pela vida, senti meu o teu desespero
Iluminado e gritado por mil e uma alienações anarquistas, até me sorriste, como só
Tu conseguias fazer, rasgar da melancolia um esboço de felicidade, tu todo dentes,
Demasiados dentes na parede e as palavras a escorrerem de volta onde já não moravas,
Sonhei contigo e escrevo-te ao Sol da tarde, apanhei medo às auroras, as madrugadas
Encerram todo o mal dos dias, embriões metálicos à espera da desculpa do azar ou uma
Distração da sorte, agradeço-te a presença nos dias cinzentos e nas noites claras e dou-te
A razão, aqui só se dura depois de uns anos e a loucura é a própria vida, sonhei contigo,
Um morto, eu um pé atrás, tímido na medida dos impossíveis, na sombra do buraco
Que vou vivendo e ainda esperam que caía, as toupeiras, é lá que te encontro, na memória
Preenchida por carências básicas, sabes, eu também não me interesso, mas a minha música
Morrerá antes de mim, já o mijo secou todo no que um dia conquistei e já não consigo
Fingir mais, a pele de camaleão avariou naquela noite em que acordei e me vi com os olhos
Dos outros, era um espelho ridículo, tu foste a cura para todos os espelhos, irrepetível,
Um Sol amargo numa vida que toda a gente ressente por saber lá no fundo, não a merecer.

Torre De Dona Chama

15/03/2014


João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de março de 2014

Noite De Poker

Tudo ficou naquela noite de poker, jogamos a fósforos,
De certeza que hoje já todos perderam a cabeça,
Quase tantas vezes quantas as vezes eu perdi a minha,
Não me lembro quem acabou por ganhar, sei que eu perdi,
Tenho agora as mãos cheias daquela noite e todas as suas
Possibilidades gastas nos dias que me afastaram dela,
Uma noite onde se encerrava um novo caminho, azul, de luz,
Escolhi dormir sobre a ressaca na segurança de uns dedos limpos
No primeiro Sol quente da manhã, e hoje sou apenas o que os
Pés me andaram, ou onde os pés me trouxeram, aqui, longe
Do café onde engoli em cerveja o arrependimento do que
Não mordi com a mesma vontade com que reescrevi toda a minha
Vida pelo filtro de um passo que ficou por dar, uma dentada,
Na verdade, menos uma foda, menos uma foda das muitas mais
Que ficaram por dar do que as que foram dadas, imitação de
Poeta com menos vontade de viver do que uma cabeça no forno,
Corta-se na abdicação de noites e sonha e exalta os curtos
Pecados que chocam na sinceridade os hipócritas fazedores
De cornos para si mesmos e para os amigos de bater nas costas,
Ficou tudo por ali e agora dizem-me que poderia ter sido eu,
Mas fui eu, eu que fiquei à porta dos olhos da vontade,
Agora olho e parece-me que fiz mal em não trocar a vaca
Pelos feijões mágicos, fiz mal, fiquei sem fósforos e a caminho
De mais uma para nada, mas o vazio maior da minha companhia sem
Os ecos dos gemidos que aquele que poderia ter sido, hoje
Provoca na mesma língua que a minha, mas sem o ser, perde-se
Sempre que se nega à vontade todas as possibilidades de um erro
E assim, o erro revela-se com todas as incertezas pelo durar fora.

19-02-2014

Coimbra


João Bosco da Silva
Insónias Em Garrafas Vazias

Ninguém acredita que como tapas às quatro da manhã com muita cerveja
E o Hemingway a medir o peso dos seus tomates com unidades de coragem
E machismo, eu ganho-lhe sempre, estou vivo, tenho o tomates cheios
De ressentimento e passo pela pior guerra de todas, a que travo todos
Os dias comigo mesmo, nem quando durmo tenho descanso, quem diria que
Um puto tão sossegado, engulo mais uns goles, deixo garrafas espalhadas
Pelo caminho que ninguém lembrará, morto, tudo, até a coragem, os
Tomates mais secos que o bacalhau da Noruega, por isso invejo a barba
De Dostoievski ou a de Whitman, enquanto a verdade fermenta na forma
De quem teve uma guerra mais íntima e todas as noites tinha a morte
Nas mãos, eu estive lá, naquela carne rejeitada pelas guerras, sem
Amor, mentira para roer até a fome desistir também, traições contadas
Como se possível também nos olhos reais, há muito que fica por dizer
Por pena, mas mais fica por dizer por medo, toda a gente sabe que
A maioria dos heróis nunca o foram por falta de testemunhas, durmam
Todos os génios enquanto todo o armamento dorme na companhia de
Toda a energia potencial e o medo de falar em público, leva o
Cheiro de uma cona nos dedos, ou a certeza do cheiro depois da
Apresentação da alma dissecada, para poderes dormir sem medo no
Teu esperma derramado no granito irmão do que me pariu, longe de
Todos os sonhos boreais, onde se espera o degelo como a vida.

19-02-2014

Coimbra


João Bosco da Silva

quinta-feira, 6 de março de 2014

Sobre O Poema

O poema, o poema não interessa, o importante é o percurso até à vontade do poema,
A vida consumida que dará carvão para poder surgir o registo do que ardeu, do que
Se sacrificou para poder existir na forma do que pode ser absorvido pelos olhos estranhos,
E digerido de uma forma sempre diferente, uma digestão inversa, entropia de pernas
Para o ar quando se lê, se recria aquilo que o poema se torna e é, não o poema, mas
O que o poema é nos olhos alheios aos dedos de quem o escreveu, o poema, esse,
Sozinho, que se foda, são palavras e as palavras não interessam, não sem o que lhe
Dá razão de ser, não sem o que as suporta e justifica, como o poema, sem os ossos,
E a carne e o sangue e o esperma e merda, não interessa a ninguém, a não ser a
Corpos vazios como as palavras vazias, alimentados com teoria e com a boca tão seca
De outras salivas, com os dedos manchados apenas com tinta, olhos grossos por terem
Visto a vida a poucos centímetros e cheios de certezas de cabelos brancos não merecidos,
O poema, o poema não interessa, mostra-me o que o trouxe cá, isso sim, me alimenta.

06-03-2014

Coimbra


João Bosco da Silva

terça-feira, 4 de março de 2014

Noiva De Vermelho

Tu és mais, eu
consegui ser
esquecimento.

Ela casou-se de vermelho, houve sinceridade na cor, com a naturalidade de uma segunda vez,
Desta, quem sabe, mesmo do admirador de hóquei no gelo, a primeira filha também de
Vermelho, mas inocente, da idade da que poderia ser minha, de vermelho como os lábios
Da mãe naquela manhã fria de Primavera cinzenta, depois de um café no restaurante
Da bomba de gasolina, a empregada a perguntar-me se queria mais alguma coisa, não obrigado,
Só estou a fazer horas para ir dar uma foda encomendada, numa manhã húmida, as florestas
Pântanos acesos, um dia perfeito para, trazes os preservativos e eu a manta, se estiver Sol,
Seco, fodemos na floresta, tenho mesmo que te foder, dizia vestida de branco, dizia ao Sol
À beira do lago Saimaa enquanto emborcávamos uma cerveja e falávamos de pouco e nada,
Além da necessidade de termos que foder, como se fosse algo que se tivesse que comer
Por estar quase a chegar ao fim o prazo de validade, ainda trazia o cheiro a Paris entranhado
Nos poros, talvez fosse disso, tenho mesmo que te foder, temos que combinar, dizia com
O noivo excitadíssimo com o mundial de hóquei no gelo, não me lembro em que país,
Viva o amor e os vestidos de noiva vermelhos com filhas duvidosas com os olhos da cor de
Outras possibilidades nascidas em pântanos e contas de cabeça apressadas pelo medo de,
A dar quase certo, quatro, cinco dias, como é possível, foda-se, será, furaria ela a negação
De além futuro, mas não, nunca o contrário, nem uma semana e já estava a receber
Ejaculações do noivo, ainda devia cheirar a sexo e latex no carro dele, cheirar a pressa, a dela,
Deixa-me provar-te, não, quero só que me penetres, entesa-me com a sumo a escorrer-me
Já pelas virilhas, salta-me em cima e parece um cavalo desesperado pela meta,
Sou apertada não sou, sentes como estou molhada, nem a paisagem se consegue apreciar
Com tanta pressa, a cerveja, depois de horas na floresta, escondido dos olhos do auxílio depois
Do pagamento do karma em forma de lama, já metabolizada, o útero já esquecido do latex
Dentro do carro do noivo, não quero preliminares, quero que me entres já, baixando as cuecas
Juntamente com as calças, e eu um excelente linguístico, apreciador de humores secretos,
Montou-me desesperada por um vestido de noiva vermelho, imagino o dia feliz, com Sol,
Como o que acabou por vir à tarde, depois de me ter vindo para um saco vazio, ou não sei,
Já com a pequena capaz de levar as alianças, as fotos no anoitecer tardio de Verão, daqueles
Longos sem chegarem verdadeiramente ao limite da escuridão, será que ela sabe, não interessa,
Está tudo atrás, tudo pela janela fora, ficou tudo dentro, seja no interior estéril de um preservativo
Integro, seja no útero infiel com um sorriso pálido de ninfomaníaca, tudo o que é real e
Sincero é o dia de vermelho, a felicidade mostrada no momento e na cabeça dele,
Nem um sinal, só eu e ela a visão dos seus cornos, quando ele o inocente, e o que é
Um momento, uma ideia, não estamos para abdicar, cumprir e sacrificar o desejo
E já se sabe que o desejo sabe sempre melhor quando vermelho, vestido de vermelho,
De vestido vermelho, não com as calças de equitação, mesmo, calças de equitação,
Umas cervejas e um pacote de bolinhos típicos, depois de muito tempo na floresta
Pantanosa, com os tomates vazios, com as calças novas e a camisola que a mãe
Tinha enviado para o aniversário, não um vestido vermelho, o sangue do mês,
Impossível, será, nunca o saberei agora, tudo camuflado por uma família feliz
E pela minha Psicose de Karsakov, ou não, sempre tomei as minhas vitaminas
Do complexo B, não é Buk, ao ver as fotos do casamento penso, será que ainda é capaz
Daquela manhã, quando fecha os olhos num dia de vontade ou numa noite de sonhos
E remorsos ou saudades, provavelmente só os meus dedos são capazes de recordar o que
A minha vida tocou nas vidas dos outros.

13-02-2014

Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva