A poesia é construída com coisas pequenas como a vida e a
vida é feita do que se prende
À memória e trazemos para sermos o que somos, o esquecimento
é morte, a vida é feita
De cheiros, como de uma t-shirt de marca nova, como aquela
azul, a primeira t-shirt de marca
No dia febril do aniversário dos catorze anos, os amigos à
espera, na sala, à volta das
Batatas fritas, do bolo da mãe e do refrigerante espanhol
barato, os amigos de infância,
Hoje, um a um, absorvidos pelo acaso, abraçando cada um
deles como que por obrigação
Do destino o bom e o mau que a vida lhes trouxe, ao lado dos
sonhos e de tudo o que
Se esperava, sabendo-se no fundo, que não se poderia ir mais
longe do que a vida,
Além do que tinha que ser, porque é a vida, a febre a tentar
ser mais forte que a vontade
De brincadeira, mesmo assim, correr, descer e vê-los juntos
por mim, sempre tão pálido
Nos dias felizes, sei que fui a depressão daquele corpo
tatuado pela dor e pela celebração
Da perda, hoje também casada e feliz ou iludida, que é quase
o mesmo, não há alegria
Que seja lúcida, nem felicidade que veja claramente, e a
melhor poesia é aquela que se despe
Da lucidez e é suja como os joelhos de um garoto, dos de
antes, que se sujavam na terra
E tinham as unhas encardidas e passavam as tardes em
palheiros a bater punhetas
E fumar cigarros de papel, sonhando com o ovo Kinder do
próximo fim-de-semana
E um beijo da prima favorita depois do banho semanal e da
camisola nova do foguetão,
Em segunda mão, claro, mas nova e quase do tamanho certo, a
vida, tudo isto e o resto que
Se tenta imortalizar em palavras, esperando o reconhecimento
dos leigos, dos que vivem com
Os olhos para fora e tornam tudo mais real e mais
importante, esvaziando garrafas de vinho
Em Montmartre numa noite de luzes e paredes de cemitério, o
corpo tatuado em celebração
De uma noite engolida pela medusa e todos os medos, o cheiro
de uma t-shirt nova,
De marca, imaginem, de marca, três vezes mais cara que a dos
catorze anos,
Arrumada entre as outras, à espera de um dia qualquer em que
esteja à mão, a vida é poesia,
Também é merda, é feita de coisas pequenas, porque tudo o
resto é insignificante.
Turku
29/07/2014
João Bosco da Silva
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