Ronco
“ – the poem oughta be
worth some beer”
al purdy
Enquanto continuarem a dar ouro pela merda dos dentes
branqueados
Pela ignorância, enquanto endeusarem a arte de ter sempre
razão
Sem saberem nada além de rapar os pêlos entre os olhos,
Enquanto se deixarem hipnotizar por letras de canções que
Podiam ter sido escritas por miúdos da quarta classe que já
tocam punhetas,
Enquanto os olhos estupidificarem tudo em que tocam
Por culpa da ligação directa da região occipital aos tomates
e à ganância,
Enquanto usarem só o espelho para ignorar a passagem dos
anos,
Acreditando que a imortalidade está nos balões que insuflam
com agulhas,
Enquanto se achar que a cor da camisola melhor porque minha,
A cor da pele melhor porque minha, o sotaque melhor porque
meu,
Enquanto se usar deus como o papão, quando se quer e convém,
Como quem está sempre doente quando têm que se tirar as mãos
dos bolsos,
Enquanto houver os que apesar de não terem televisão,
Aparecem mais do que o que escrevem e vendem-se ao holofote
mais forte,
Enquanto houver os que estão tão fartos de toda esta merda
Que se deixam afogar em goles intermináveis e rasgam-se
pelos dedos,
Enquanto houver os críticos que criticam só porque não sabem
Fazer mais nada e querem sempre ficar por cima, mesmo que
capados,
Enquanto houver cegos por opção, porque dentro deles o mundo
melhor
E mais vale ficar enterrado numa avalanche que ser coberto
de merda,
Enquanto houver os que fodem para se encontrarem dentro,
fora deles,
Ou na submissão dos outros e os que são pagos por isso,
Enquanto houver espaço na página e a pastelaria ou o café
Estiverem abertos, enquanto houver tinta, enquanto o sangue
não arrefecer,
Enquanto o mundo for mundo, será tudo uma valente merda,
Ao menos não escondam o focinho nem a piça em espiral,
ronquemos irmãos.
Ronco II
Um gajo esfarrapa-se todo por estes gajos e nada, esta gente
toda,
Que vive e pensa e sonha e teme e deseja e fode, engole,
fodia mais
Se lhe baixassem as calças por serem todos tão especiais,
mas nada,
Um gajo pode ser grande, mesmo muito grande, mas não existe
Enquanto não entrar em alguém, precisámos de olhos como do
corpo,
Com o tempo fala-se com árvores, pedras, deus até, a água
Engole-se , mas antes agradecemos-lhe a frescura, é isto,
mas um gajo
Esfarrapa-se todo, arma-se em mutante dos nervos, nem um
pássaro
Se levante, abre-se a janela, um frio terrível, nem dá
vontade de grandes
Gritos, abre-se mais uma garrafa e grita-se ao contrário,
engole-se pronto,
Não vale a pena, são todos umas putas armadas em santas,
Uns miseráveis gordos de fome e solidão, querem é beiça
E prepúcio retraído, nem é papel, é mesmo fome de um sovaco
azedo
Que os abrace, anda um gajo a esfarrapar-se por isto,
Há fomes piores, o musgo seca, o menino jesus do presépio
Não tem mãos, os olhos parecem que enrugaram e o menino
Que não morreu, parece apodrecer no colo que rejeita
Porque agora é homem, anda um gajo neste negócio de pérolas,
Para os porcos dormirem sossegados nos palácios que os
burros admiram.
Ronco III
“flowers stink beauty
rots gods die”
al purdy
Os olhos já não me perguntam, o que te falta fazer,
perguntam-me, o que te faltou fazer,
E o cabelo anui, confirmando o que os anos redondos levam,
os fantasmas decidem,
Depois de anos de silêncio, abrir os lábios carnudos, para
anunciarem a absolvição
Dos seus hábitos canibais, a glória redentora, a passagem da
estafeta do pecado tão
Pouco original, como que dizem, não soubeste fazer mais nada
a não ser cornos, olha agora
O que os cornudos sabem fazer, de certo não lhes engoliram
as probabilidades,
A festa acabou há tanto tempo, já se levantaram muitas
feiras e as calças brancas a estas horas
Já nem devem servir, ou não se baixam com a mesma pressa até
às coxas e um alívio quase
Dentro, atirado para o silvado ao lado, aqueles lábios a
brilhar ao luar, ou se calhar só
A cerveja a fermentar, os mesmos lábios no cemitério, aquela
surpresa nos dedos,
Dançando como as chamas das velhas, escorregadios, que
beleza haverá nisto tudo,
Que lição e para quê, se no fim se rasgam, se apagam, secam,
e até os olhos estranhos,
Como as glórias absolvidoras do canibalismo das calças
brancas, a sua sede de joelhos
No chão na hora em que os sonhos morrem e fica apenas o
cheiro entranhado no hipocampo.
Ronco IV
Que foi, nunca viste as redes pelas costuras, o teu avô no
cemitério, as tuas mãos
Vazias e as costas nuas penetradas pelo futuro que os passos
vão formando,
Que foi, esqueceste-te do sabor do sangue nos pulmões
arrancados à geada,
Já não te lembras dos amigos que sustentaram as tuas
punhetas com baralhos
De cartas da loja dos trezentos e os vídeos resgatados dos
píncaros dos guarda-fatos,
Que foi agora, os anos tornaram-te ingrato, hipócrita,
senil, a idade não te desculpa,
Faltou-te foder alguém famoso para teres seiva suficiente no
ego, murchaste precocemente,
Que foi, faltam-te os tomates agora, depois de teres fodido
a rececionista
Num quarto do seu próprio hotel aos vinte e um anos de idade
e latitude ártica,
Não há um poema que te valha, nem um copo que seja
suficientemente cheio,
Que foi, vais gritar agora o desespero todo, vais engolir
tudo o que a avalanche
Te guardou, deixa os sorrisos e as esperas desencontradas,
já te passou a hora,
Valete fratres, nem um valete de paus, tu, que nunca
aprendeste a jogar
Ao chincalhão nos intervalos, quando ainda tinhas espaço nas
mãos para ser alguém,
Que foi, agora, alguns têm-te medo, não sabem que sacrificas
a fome pelo ócio,
E que os versos são consequências da vida, da dor, da morte,
reflexos do prazer,
No tempo dos assassinos, que engoliam, cuspiam, passavam
lenços de papel,
Tomavam comprimidos comprados logo de manhã ao senhor da
farmácia,
Que foi, o elevador não te afastou da senhora arquiteta, que
planeava fazer
De ti um renascimento glorioso de uma ruína imperial
qualquer que ninguém lembra,
Foi o vinho do porto, naquela noite de São João, que foi
agora, tiveste a inveja de
Professores na cidade berço, tiveste a miúda do café na
ressaca, a olhar para ti
Como se esperasse não haver papel para secar as mãos na casa
de banho,
Que foi, já viveste demasiado em menos de três décadas,
nunca pensaste chegar
A desfrutar de um whisky de dez anos sem o consentimento dos
que valorizam
Tudo pelos números, se eles soubessem que na Skye céu de tenra
idade,
Que foi, não esperes que nos impérios arruinados se assuma a
ignorância,
Chega, vai mijar versos a outro lado, ou ejacula com a
janela do carro aberta
Numa geada leve, com o harmonioso aroma de fundo da pocilga,
enquanto
Os alunos esperam, a oportunidade de recusar, aprender ao
menos, mais uma merda.
Ronco V
Enquanto a minha cara incha pelo tédio, pela derrota dos
anos, pelas submissão
Ao álcool por nunca ter conseguido ter a vida que me
ensinaram a viver
Na televisão e nos livros, relembro a glória que foram os
anos em que
Supostamente ainda não era tempo de ser, fosse o que fosse,
naquele aniversário
Do primo dela, no carro da minha mãe, com o cabelo a
acumular humidade
E ondas proporcionais às penetrações, o meu aniversário
também,
No rio onde afogaram gerações de cães e de sonhos, onde
lançámos
Mais tarde a cinza dos cigarros dos avôs, resgatados da
ditadura e das colónias,
A caminho da posta mal passada e do vinho tinto capaz de
aguentar geadas
Nos pipos das adegas eternas, hajam brasas e um amigo dos
que nos viram
De luvas nas primeiras aulas da manhã, porque ao menos
luvas,
Dos que nos viram plantar uma miopia que foi crescendo para
A vergonha da líbido dos dezoito anos e daqueles dedos
esfomeados
Por carnavais e máscaras em sofás nos futuros postos da GNR
que ainda hoje
Promessas de presidentes da junta de esquerda e direita,
ping-pong
De países vestidos de democracia para o carnaval que têm
sido as últimas décadas,
E é isto, que mais se espera de um indivíduo que trocou a
missa de Domingo
Pela ressaca das manhãs indiscriminadas, deixou os acólitos
porque a fórmula um, afinal,
Algo aborrecidíssimo, coisa de nórdicos ou alemães e padres
que pelas
Línguas estéreis foram fodidos de lá para fora antes das
voltas terem sido todas dadas.
Ronco VI (Heavy
Machine Gun)
Ò pá, lembras-te de quando o destino do mundo estava nas
nossas mãos,
Nos nossos dedos, e entretanto, fazíamos uma pausa para
arrancar um pouco
De musgo às fragas, lembras-te quão leve era a
responsabilidade,
E que fácil era fugir dos caixotes do lixo em chamas e dos
balões de água
Lançados pelas chaminés abaixo, não fossem os amigos
traidores,
Sempre os amigos traidores, os amigos traidores, os amigos
traidores,
Esses cabões, perdoámos todas as mulheres, todos os beijos
perdidos
Onde não estávamos, quase os filhos que não tivemos, nunca
os amigos
Traidores, que nos sujam os versos com explicações, aqui ele
estava
A falar duma vez em que foi com uma namorada para o rio da
terra
E não lhe tocou, nem um pentelho, e é uma afronta tão grande
a verdade,
Nem um pentelho, não como o da terra vizinha, que aproveitou
bem o Verão,
Verão, verão que foi muita frustração acumulada, depois nem
sei,
Houve demolição de castelos, degelos, guerras santas,
terrorismo biológico,
Overdoses de serotonina, não podes competir com um gajo
feliz,
Ò pá, nem sei, isto é uma explicação, uma confissão ou mais
um ronco.
Ronco VII (Rabo
Enrolado)
Um anti-Bandini, porque sempre preferi evitar a confissão,
Na casa dela, no Verão, com uma merenda de música da moda,
No quarto dela, um álbum atrás do outro, gostava de tudo
Com a mesma sinceridade da fome de um Bandini,
Mas ninguém se lançou às nádegas dela, hoje nem
As imagino, chupadas por um marido, uma filha,
Décadas, ficava a dormir naquelas manhãs de Verão
E não tinha dinheiro, nem idade para a piscina municipal,
Fiquei com o brinde dos livros grossos do Verão passado,
Ah, que bem, que gosta de Hemingway, até leu O Príncipe,
Agora está a levar os de Niestzsche um atrás do outro,
O sabor daquele grelo, mas só carne, este tesão,
Só carne, aquele amor, só desilusão, anti-Bandini
A caminho da bruskowskidão, tinha os dedos secos,
Tinha os lábios secos, olha, acabou a música.
Ronco VIII (Festa Dos
Bombos)
Os bombos tentam calar-me, mas já não consigo ter paciência
para o ritmo dos dedos,
As chamas aquecem apenas o olhar e os poetas todos, aposto
que a estas horas
Bebem, cheiram-se todos e sãos os melhores amigos uns dos
outros,
Vêm-se depois confessar aos padres miseráveis da periferia,
afogados no tédio,
Em sofás esburacados pelo frio dos invernos demasiado
inesperados todos os anos,
E é isto, peço desculpa pelos agradecimentos aos poetas,
desculpem que não
Seja apenas carvão, ainda brasas, porra e isto nem queima,
soprem cabrões,
Ao ritmo dos bombos, nas palhas, no Minho, na matança do
porco, ou na Galiza,
É igual, não se usava gás, abria-se também o porco de outra
forma,
Daí eu escrever tão aberto, o rasgo vai de cima até aos
colhões do animal,
Era quase sempre porca, contudo, os anos oitenta ainda
espreitavam
Nas farmácias e os iogurtes tinham uma forma de engate
ultrapassado
Com bonecos unicolores, meu deus, que pretendo com isto,
Ultrapassar o Hércules pela Grécia fora, hoje não sei se
venceria
Tanta cabeça de Hidra, os bombos não conseguem a ressonância
Precisa com as cinzas, então morre-se um pouco, a geada
recebe de braços abertos.
Sem comentários:
Enviar um comentário