Um Cheiro Entranhado Nos Dedos
“a poesia repete
o instante da sua
criação, muito para além dos poemas
e do poeta”
Nuno Júdice
Não suporto este cheiro nos dedos, já lavei as mãos sete
vezes, se calhar,
Isto agora só lá vai com um poema, mas os olhos hoje estão
fartos da textura
Do papel desperdiçado em tanto génio, tanta verdade a ser
dita,
É verdade o que se ouve nos cafés sobre a verdade ser como a
poesia,
Ninguém gosta de a ouvir, terei que limpar os dedos nuns
versos,
Como naquela visita à capital, aos 16 anos para o torneio de
basquetebol,
A viagem toda a ler o Gatsby, desde Trás-os-Montes,
escondido das miúdas
Que me queriam tirar fotos com as máquinas descartáveis, atrás
das cortinas
E eu cobria-as de punhetas nos beliches do quartel da tropa,
enquanto uns ressonavam
E outros não se calavam porque a mãe não estava e na verdade
tinham medo
E queriam mostrar-se homens, tenho a certeza que uma futura
poeta
Me piscou o olho no refeitório da faculdade, pisei o Pessoa
sem saber quem era,
Distraído como estava com um par de lésbicas, os dedos
gordurosos
Do hambúrguer, das primeiras, e um livro de poesia a ajudar na
multinacional antes
De ir ver quem trocou a fome pelo kartódromo, na verdade não
escrevi lá nada,
Andei ocupado em aprender a jogar xadrez e a fotografar o
túmulo do Camões,
E as salsichas cozidas com o chocolate quente nas malgas de
lata no quartel,
Não me pareceu uma refeição de poeta, faltava bagaço na
coisa,
Já têm outro cheiro, à água do rio, entre o fato de banho à
sombra
Dos salgueiros, já cheira à pele salgada a desabrochar em
broche,
Já cheira aos anos perdidos e somados ao fracasso que agora
simplesmente
Se aceita, como um cheiro entranhado nos dedos, que passa,
mas persiste.
Turku
João Bosco da Silva
06.01.2016
Sem comentários:
Enviar um comentário