Amarelecer
Chegas a um ponto em que deixas de procurar o sabor da primeira cerveja,
Em parte, porque é inútil, a mesma língua não reconheceria essa outra boca,
Como o Sol não reconhece todos os dias esses mesmos olhos
E o seu acumular de fracassos por trás da cortinha dos sorrisos que insistes
Em acender contra o vento de anoiteceres longínquos,
Encontras-te sempre renovado num par de meias lavado,
Num gesto que tantas vezes repetiste que se tornou em mais um dedo
Ou um cabelo que nunca caiu, que te prende a queda como um amigo
Que se lembra que ainda respiras e com quem partilhaste o mesmo
Combustível em anos de incêndios e geadas dolorosas,
Aprendeste muito mais com as mãos vazias, com os bolsos cheios de cotão,
Paredes nuas em quartos pequenos e quase silenciosos,
Não fosse a má canalização e os vizinhos cheios de vida e mijo,
É difícil reconhecer o esquecimento como aceitar o que o espelho te apresenta,
Parecem impossíveis os anos, tantos para chegar a tão pouco,
A conservação de um nome, meia dúzia de festas em família,
O tempo é um velho que te surpreende com um sorriso desdentado,
Estranho mas ao mesmo tempo familiar, não passas de uma varanda
Cheia de garrafas vazias à espera do verão ou da vergonha,
Mais um sonho encravado nas costas que só os outros percebem
E um copo partilhado com o fôlego que soprou a vida há muitos anos,
Numa tarde gelada, enquanto esperas pelo sabor da última cerveja.
Turku
05.03.2018
João Bosco da Silva
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