terça-feira, 29 de setembro de 2020

 

Esse teu Corpo

 

para T.N.,

 

Ao meu lado, a distância, agora com um filho e um anel novo noutro dedo,

Aquela festa de Natal certamente limpa, quase esquecida, naquela noite

Em que me levou pela mão para um canto escuro no bar e depois para o táxi,

Onde me fez esperar à entrada de sua casa, ele já não vem hoje, podes subir,

Nem eu me vim, apesar da tua dedicada devoção a uma gaita desconhecida,

Nunca tinha imaginado o teu olho do cu sentado na minha língua de vinho tinto,

Nem o meu caralho insuflado no teu corpo carente, rodeado pela roupa lavada dele

À espera de ser dobrada, não me vim, contudo, quando saí de ti, pediste-me

Um longo abraço e foi o único prazer que realmente te dei, agora, ao meu lado,

És apenas distância, uma noite que mantemos em silêncio, que tentas esquecer

E por isso sempre no teu olhar, esse teu corpo, que sempre, apenas teu.

 

27.09.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 


Jack Daniel's

 

“Mi vida fue una sucesión

de oportunidades perdidas”

Roberto Bolaño

 

Não sei se os anos ou os copos vazios na memória daquela noite,

Em Almeria com o irmão espanhol, à deriva na noite quente

Do castelhano mais doce, no coração vibrando ainda as cordas

Da guitarra espanhola da noite anterior, os lábios ainda escuros

Do tinto de verano da tarde de féria, o ar saturado de churros

E juventude, a viagem de autocarro tinha sido longa até ao sul,

Atravessar fronteiras quando jovem é como penetrar uma mulher nova,

Naquela noite conheci a andaluza com olhar de algodão doce

E à velocidade da luz do último bar, apaixonamo-nos pela vontade

Um do outro e logo tudo o resto desapareceu naquela multidão ruidosa,

Restando apenas as nossas bocas envoltas por uma pele vibrante e húmida,

Os meus dedos logo lhe encontraram a sinceridade suculenta,

Só não fodemos ali mesmo por consideração ao irmão espanhol,

Que não contava que a sua velha amiga tão fiel ao desejo,

A culpa, talvez, tenha sido do Jack Daniel's, ou da juventude,

Ou da fome irresistível de olhos ibéricos numa noite quente com ar africano,

No dia seguinte, à tarde, beijamo-nos com a timidez de uma despedida definitiva,

Nunca mais a vi, não me lembro do seu nome, ficou apenas a voracidade

Dos nossos corpos, catabolizada por chupitos do seu whisky favorito.

 

Turku

 

21.09.2020

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 

Eco das Luzes que se Apagam

 

Tenho testemunhado ao desaparecimento de muitas ruínas,

Uma vez impérios de sonhos e fontes de sorrisos,

Um último pedido pode ser apenas dar um jeito na almofada,

O último prazer passar a mão pela cara barbeada,

Puxo a mandíbula ao palato que já ninguém habita,

Conheci pouco mais que uma despedida, é o que somos,

Afinal, uma ilusão frágil que toca e estraga, para depois se apagar

No mesmo vazio absoluto de onde veio.

 

18.09.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 13 de setembro de 2020


Perfume

Este cheiro a bílis, manchas de cerveja, meias molhadas e mijo de gato
Em calças com manchas secas de solidão, é o cheiro da humanidade,
Não há animal mais repugnante do que este que vive abismos à superfície,
Incapaz de aceitar aquilo que realmente é, uma doença bípede,
Num planeta cansado, mortal como tudo, esculpindo eternidades
Com a sua ignorância, a erosão de uma rocha ao sol nunca apestará
Como o hálito de todas as mentiras, toda a vida tem potencial de peste,
O amor transforma-se em ódio, a beleza em saudades tristes,
Os sonhos num acordar cinzento para mais um dia vazio,
Este cheiro repugnante do centro do universo onde não nascem estrelas bailarinas.

13.09.2020

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 7 de setembro de 2020


O Amadurecer das Uvas - Haikus

I

A bondade
não desperdiça
o arroz.

O pó do caminho
não incomoda
as primaveras.

Longo o crepúsculo
quando nada
se espera da manhã.

Colhe flores o samurai
ainda quente o sangue
na lâmina.

Na chawan
olhos verdes
que me esqueceram.

No amor e na morte
a mesma delicadeza
das flores.

O herói morto
com as nádegas
à chuva.

Deixaste queimar
o arroz –
amanhecer.

Comido pela mesma
fome
o trevo de quatro folhas.

Sobre a erva fresca
o corpo
banhado pelo sol.

Mil silêncios
a dança da erva
no fim de tarde.

Passam sem nome
todos os sonhos
alheios.

Como recordações
no início do verão
as moscas.

Quase não me nota
o sol
roendo uma erva.

Toda a vida
na sombra
de um insecto.

Debaixo da árvore
sou um mundo
para os insectos.

Na minha perna
que procura
a lagarta?

Folhas verdes
pele dourada
roupas de verão.

E se o universo
um gigante deitado
debaixo de uma árvore?

Ninguém me chama
para jantar –
andorinhas cantam.

Coberto de moscas
e pulgão –
pôr-do-sol.

Rimbaud ao sol
cerveja
na mesa.

A chávena ainda quente
do chá
que já bebi.

Morango silvestre
inocente mastigo
a tua beleza.

Sou um campeão
do arrependimento –
acaba a Primavera.


II

Vendedora de morangos
o sol aquece
meus cabelos brancos.

Debaixo da ameixeira
corre a água
mais fresca.

Põe-se o Sol
nas folhas
do marmeleiro.

Na boca vazia
Ainda a doçura
Dos pessegueiros cortados.

Cor das flores
de cerejeira –
distancia e sonho.

No Ribeiro fresco
lava-se a terra
das batatas novas.

Sofrem na canícula
as roseiras
de minha mãe.

Belo o perfume
de todas as flores –
noite sem luar.

As mimosas da infância
do tamanho
da saudade.

Nos olhos do meu pai
a sabedoria
de um velho castanheiro.

No ondular da seara
a fragrância
da tua pele morena.

Longe estão os ramos
das mimosas
da infância.

O sabor dos agriões
distante
como a juventude.

Aberta sobre a mesa
a melancia madura –
Verão.

No tanque da roupa
cai
uma maçã madura.

III

Sobre o dourado
da madrugada
voa a gaivota.

Incendeia-se o céu
ainda a terra
fria de sono.

Asfalto quente
da cidade –
ninguém cava a terra.

Aquela gota de orvalho
que secou
e ninguém viu.

Um gato atravessa
uma rua deserta –
abro os olhos.

Sentado no granito
também vou –
folha levada pelo vento.

Entre duas ervas
brilha ao Sol
a fina teia.

Passa a zumbir
a mosca –
em que pensava?

Em cima do pinheiro
o Sol
mais próximo.

Entre as páginas
esmagado
um mosquito.

No pátio da escola
aquela mimosa
e a minha infância.

Quão longe
podemos estar
do que somos?

Cada árvore
reconhece
a criança que fui.

Pinhas sobre
o musgo
sob pinheiros.

Parar numa sombra
e reflectir
nos cheiros do verão.

Passou uma lesma
no restolho –
amanhece.

IV

Rodeadas por seixos
as barbatanas
de uma foca.

Este mar
não parece ir
nem voltar.

Cheiro das macieiras
ao fim da tarde –
alguém prepara o jantar.

Tocado pelas recordações
o trigo
estremece.

Só os grilos cantam
numa língua
que reconheço.

Passou por mim
uma libelinha
ou lembro a minha mãe?

Onde a gente se delicia
cagam os gansos-do-canadá –
dia de praia.

Como podem
estes velhos dentes
ter tanta fome?

Levam o Sol
as jovens rolas –
tarde de Agosto.

Amargo o café
como o homem
a quem a juventude acabou.

A quem se irão dar
aqueles jovens
corpos cintilantes?

Pernas que se abrem
sonhos que cessam –
fim de verão.

Quantas as mães
do capitão Shigemoto –
mosca da fruta.

Mais um belo dia
para ser
desperdiçado.

Nas páginas
do livro sagrado
caga a mosca.

A muitos toca
a solidão
de um vulcão.

Um fio de cabelo dourado
cai leve
como o desejo.

Reflectido na água
o passado sorri
até num dia cinzento.

“Dantes”
diz olhando o copo
vazio.

Na companhia das pedras
duram
as vidas imóveis.

Pintam-se de sol
as folhas –
fim de verão.



Turku, Verão 2020

João Bosco da Silva


domingo, 6 de setembro de 2020


Vík
Í Mýrdal 

Acordar cedo com a aranha a tecer a teia na janela 
Para apanhar os curtos raios de sol nas gotas de orvalho, 
Encher a cabana com o cheiro do café, que se engole calmamente 
Enquanto nos montes verdes, as ovelhas pastam a lentidão dos dias, 
Conquistar distâncias e alturas primitivas, respirar alto a pureza 
De um dia limpo, encontrar a reconfortante exaustão silenciosa do corpo 
E à noite depois de umas trutas fritas em manteiga, 
Uma garrafa de vinho distante, Buson na manta de lã sobre os joelhos 
E um gato que nos visita como reminiscências de infância. 

Turku 

06.09.2020 

João Bosco da Silva