terça-feira, 28 de janeiro de 2025

 

 


 

Quanto excesso cabe nos interstícios

De uma noite esperada, haverão questões

Que salvem, mãos que empurrem

Os sonhos na lama, mergulhando-os

Em profundidades de visco e merda,

Quem nunca viu uma árvore

A não ser no inverno, onde encontrará

A felicidade e a cor dos dias,

Sob a neve ninguém adivinha sequer

A areia da praia e a merda dos ganços

Que partiram quando o verão acabou,

Os livros esperam, marcados pela desistência

Insegura, nada corre a não ser o tempo

E a tormenta das artérias.

 

28/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 25 de janeiro de 2025

 


Cemitério Romano

 

“Llueve,

Llueve sempre en las ruinas.”

Leopoldo María Panero

 

Costumo sonhar com vastos cemitérios romanos,

Com árvores invernais, túmulos partidos,

Alguns ossos expostos que o esquecimento permite,

Contudo, não é um pesadelo, é um passeio lento,

Sem procura, no ar, o cheiro a mármore escurecido

Pelo fumo de mil velas, húmus e a ausência da carne,

Existe um silêncio sibilante, desconcertante

E apesar do vazio e da solidão, alguém me acompanha,

Sempre, há folhas caídas, já sem sinais de verão,

Algumas entram pelas brechas na pedra dos túmulos,

Tocam os ossos frios e anónimos pelo esquecimento,

Uma amalgama descomposta de matéria orgânica,

Onde não cabem sonhos de poder ou avareza,

Humildemente, passando por um souto seco,

Acordo mais uma vez e o mundo recebe-me sem entusiasmo.

 

24/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

 

um minuto ao sol e o silêncio possível – haikus

 

 

Conseguisse ser eu

limpo e claro

como esta manhã de dezembro.

 

Sentado ao Sol

ouço os pássaros –

manhã de véspera.

 

Ao sol esvoaçam

os enfeites de Natal –

manhã gelada.

 

Como o campo geado

também eu

ao sol.

 

Só peço um minuto

em silêncio ao sol –

manhã de consoada.

 

Só peço um minuto ao sol

e o silêncio possível

desta terra.

 

Secou o carrasco

da minha infância –

um coto seco e recordações.

 

Nascido da fraga

só cresceu

até a infância acabar.

 

A sombra do pequeno pinheiro

cobre quase todo

o campo verdejante.

 

O sol de um lado

a geada já do outro –

crepúsculo de consoada.

 

Galos cantam gatos lutam

bebé chora –

Natal em branco.

 

Pudesse eu

simplesmente ser

um varredor de musgo.

 

Uma infância sem ruínas

é uma infância

arruinada.

 

Arrumados os bombos

as oliveiras agora

também descansam.

 

Varrer as agulhas

deste musgo –

fosse esse o propósito.

 

Torre de Dona Chama, Dezembro 2024

 


CCC

 

Aqui, nesta caverna imutável, como se o tempo

Só passasse lá fora e se tenha esquecido de tudo,

Menos dos preços, regresso como a um refúgio,

Onde posso estar em companhia na minha solidão,

Relembro velhos desejos, amestrados pelo cansaço,

A agonia de amores perdidos, pouco resta no copo,

Um vestígio de espuma, a ideia de uma sede

Que nem sede era, uma fome que rasga e morde

E engole, na mesa ao fundo, a loira com camisa

De flanela lê, a cerveja a meio, leva-a aos lábios,

Apoia no punho toda a concentração do mundo

Naquele livro, por momentos apaixono-me,

Mas depois olho o relógio, o próximo autocarro

Parte em dez minutos, nunca há tempo para saltar no abismo.

 

Turku

 

08/01/2025

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 

Matéria Onírica

 

Lentamente se dissipa o nevoeiro,

Os sonhos tornam-se mais claros,

Apenas sonhos, em que tento ver

Se também as coisas neles,

São feitas das mesmas partículas

Do mundo real e se o são então

Quão real realmente o real é,

Se o sonho mostra a mesma clareza,

Uma cidade inteira, ruas que nunca vi,

Arranco um cartaz colado a um edifício

Que o meu cérebro construiu,

Com uma arquitectura clara,

Uma pintura perfeita, numa parede rugosa,

Rasgo o papel, e no rasgo os mesmos filamentos,

A fibra da pasta, pudesse eu ver

Microscopicamente e talvez,

Moléculas, átomos, num mundo onírico,

Sei que é um sonho, exploro a sua

Natureza, com a pressa de uma primeira vez

Que se sabe também última,

Aceito beijos sem remorsos, agarro tudo,

Em breve sairei deste sonho para outro.

 

02/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 

Crónica de Ano Novo

 

Noite de ano novo, as passas já se digerem,

Lavadas com champanhe, doze desejos,

A ilusão de que se concretizem,

Quando não se dá sequer o primeiro passo

Para chegar à mudança que se pede,

Na televisão, há anos silenciosa, mais do mesmo,

Alguém grita num dos apartamentos do prédio,

“Hei, Hei, Ajuda”, em finlandês, parece vir de cima,

O pedido repete-se, ainda se ouvem foguetes,

“Os finlandeses quando pedem ajuda, é porque precisam mesmo”,

Diz-me a minha companheira, alguém está realmente aflito,

Saio à procura da origem daquele grito,

No andar de cima, silêncio, em baixo a televisão,

O pedido torna-se quente, mais dois andares em baixo,

É certamente o velhinho que mora sozinho,

Vi-o uma vez de andarilho, segurei-lhe a porta

E fingiu nem me ver, bato à porta e confirmo,

Tinha caído, sozinho, na noite de ano novo,

Ligo às autoridades, passados minutos, vêm em auxílio,

Então regresso à minha caixa, invisível,

E continuo no champanhe, mais duas "ginebras"

Lembro-me por alguma razão do Leopoldo María Panero,

Quantas vezes no trabalho recebemos quem fica no chão dias a fio,

Rabdomiólise, hipotermia, hipernatremia, insuficiência renal,

Úlceras de pressão, necrose, acidose metabólica, hipoglicemia,

E tanto mais nos pode trazer a solidão de uma simples queda,

Hoje enquanto comia a meias uma tangerina com a minha filha,

Olhando a neve fresca deste ano novo,

Esboçava mentalmente esta pequena crónica de ano novo,

Pareceu-me um poema, mas afinal é apenas isto.

 

01/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva