domingo, 27 de abril de 2025

 


O Meu Filme Favorito de Kurosawa

 

O meu filme favorito de Kurosawa,

Não é o que vi mais vezes e foi o que ditou

A separação de Toshiro Mifune e Akira Kurosawa,

Por causa de uma barba de dois anos,

“Amigos amiguinhos, negócios à parte”,

É um filme doloroso, sobre crescimento,

Portanto longo e difícil, sobre humilhados e ofendidos,

A miséria que é tão humana quanto a compaixão,

Mas também a crueldade, é dostoievskiano,

O último filme a preto e branco de Kurosawa,

Contudo, o filme que vi uma dúzia de vezes

É outro, Yojimbo, cada vez que o vejo,

Dependendo do humor e seriedade no momento,

É sempre um filme diferente, apesar do familiar enredo,

Tão bem copiado por Sergio Leone no seu

Por Um Punhado de Dólares, é a história,

Tantas vezes repetida, de um destemido homem sem nome,

Trazido pela força do destino a uma terra que sofre

Esmagada entre a vontade de poder e a ganância dos poderosos,

Um anti-herói acariciado pelo vento, cómico,

Sem passado ou futuro, que rasga o presente,

Marcando a vida dos que toca, fazendo justiça

Onde a justiça ou não chega, ou é covarde para se manifestar,

O Barba Ruiva é sempre um filme sério,

Independentemente do meu humor, por isso, afinal de contas,

O meu filme favorito de Kurosawa, não seja

O meu filme favorito de Kurosawa, mas fica melhor

Mostrar um ar sóbrio e circunspecto.

 

25/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 26 de abril de 2025

 


Entre Amigos

 

para a Tatiana Faia,

 

Passamos juntos o feriado quase todo,

Acompanhaste-me na sesta da Alva,

Depois, na minha hora livre, fomos

Até ao tasco do costume, depois reparei

Que já restava pouco de ti

E com delicadeza, coloquei-te entre

Os abacates, os toalhetes de bebé

E o cottage cheese, de manhã, ainda quero

Beber um café e água com gás contigo,

Enquanto a Alva, com o pequeno-almoço,

Pinta a absoluta resposta.

 

25/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva


sexta-feira, 25 de abril de 2025

 


Abril

 

Escrever em abril sempre me deu um prazer especial,

Lembro-me particularmente dum fim de tarde,

Antes dos meus dezoito anos, depois do dia passado

Na aldeia da minha mãe, sentado em frente ao monitor,

Sentindo o peculiar cheiro do dia que arrefece,

Enquanto o laranja fogo se troca por um azul ainda quente,

Um dia livre, de feriado, sem adiamentos,

E os meus dedos como o dia, jovens como a primavera,

Hoje o meu país é o mundo e a liberdade,

Parece-me, é como a felicidade, ou o amor eterno,

É um direito que nos entregam por favor,

Um cheirinho aqui ou ali, nunca o prato cheio,

Não vá a engrenagem saltar da maquinaria cega,

Que alimenta meia dúzia de porcos, num vagão

Em direção ao apocalipse, esse paraíso dos fascistas.

 

25/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 23 de abril de 2025

 


Bukowski também esperou

 

Sonhei que amanhã ia ter teste de química,

Como habitual, esperei pela aula de revisões,

Para sentir o pânico que realmente me motivava

Naquela noite antes, chegava para ficar entre

Os cinco melhores, mas a aula de revisão

Era um teste surpresa, então bloqueei,

Também sonhei com uma colega minha,

Mas isso, fica para outros versos,

Era para escrever sobre sonhos,

Mas dou-me conta, depois de mais uma nega

De uma editora, que enviei o livro inédito

Para quase vinte editoras, das quais umas três,

Responderam basicamente da mesma forma,

As outras nada, estou certo que escrevo agora

Melhor que há dez ou vinte anos,

Mas tenho quase quarenta anos,

Perdi certamente o brilho que atrai o cio das traças,

O melhor é voltar a adormecer, pode ser

Que a minha colega ainda lá esteja, à espera.

 

Turku

 

23/04/2025

 

João Bosco da Silva

 

terça-feira, 15 de abril de 2025

 


Cá Estamos Nós Outra Vez

 

Aos poucos, vamos esquecendo,

Quem já há muito também não nos lembra,

Amores e insónias, nomes que quase ficam,

As faces ou já não são ou mentem por caduquez,

Não faz mal, nada é para ficar, nada é,

Isso o tempo nos mostrará quando voltar tudo

Para o milagre de onde saiu,

Não o que tanto se quis, até a madrugada

Fechar os cafés já vazios de tudo menos

De ilusão, vício e cio, aos poucos,

Também eu quase nem me lembro de ti,

Contudo, este não é um dos casos.

 

15/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 13 de abril de 2025

 


This Mortal Coil

 

Depois de cinco cervejas, já ninguém espera muito de ti,

Eu também não, mas já escrevi três poemas hoje

E este é o quarto, não espero nada mais que isto,

Espremi bem os limões, agora lambo as feridas,

A neutralidade do vazio, muitas vezes basta, o futuro

Está assegurado, o meu silêncio nunca será absoluto,

É esse o alívio último desta mola mortal.

 

11/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 12 de abril de 2025

 


Num Café de Kaurismäki

 

para a Raquel Nobre Guerra,

 

Sempre me encontrei nos diálogos de Kaurismäki,

Aqueles dos gestos do silêncio, da dor nos olhos,

Na mão que agarra o copo de cerveja já morta,

Mais uma, só mais uma, a adiar uma obrigação,

Um trabalho que consome a alma por uns trocados,

Uma miséria qualquer, o ridículo cómico da vida,

Dos pequenos que somos a grande maioria,

Os sonhos a preto e branco do povo,

O silêncio, o silêncio que ecoa na prostração

Dum olhar, a tensão infinita do silêncio,

As despedidas breves e eternas, sexta-feira

À noite num café, a música sobrepõe-se ao vazio,

Despe o silêncio, ouço o toque das minhas mãos

Que seguram o copo de cerveja, um velho olha

Para as máquinas de poker, um esgarra no vazio

Do seu interior, a empregada ruiva, filha do dono,

Olha através da janela enquanto agita um copo

Com gelo, ouço-o a bater no vidro, que pensará ela,

Em silêncio, tanto, tão longe, aquele olhar melancólico

E o copo vai à boca e parece que nos olhos lhe nasce

Um sorriso triste como um café de Kaurismäki.

 

11/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 


 


Nietzsche, Sestas e Vinhas

 

Sabes o que me lembra isto, minha filha,

Enquanto dormes sobre o meu peito,

E aproveito o silêncio para ler o que ficou

Por ler na minha adolescência,

Lembro-me de quando era um rapazola

E ia para a vinha com o meu pai,

Ele ia sulfatar, cavar ou podar, o que fosse,

Eu ficava sentado no caminho a ler

Um livro do qual pouco compreendia,

Hoje minha filha, que compreendo muito mais

Do que leio e tudo me surpreende menos,

Nunca trocaria entrar na vinha,

Sujar as mãos com o meu pai,

Por todos os livros do mundo, os livros

São eternos e há sempre tempo para eles,

Se este livro que seguro te acordasse,

Te afastasse do meu peito, podes ter a certeza

Que o pousaria logo de seguida.

 

Turku

 

11/04/2025

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 11 de abril de 2025

 




O Último Dobra-Ventos

 

Na segunda classe julgava que controlava o vento

Com o pensamento, pensava, para, e parava,

Pensava, regressa, e regressava, mais forte, e soprava

Com mais intensidade, isto a caminho da escola,

Pelas ruas daquela velha aldeia minhota,

Que os meus joelhos bem conheciam,

Cada paralelo que rasgava a minha carne inocente,

No regresso a casa, arrastado pela violência

Dos garotos mais velhos, que por força,

Me queriam atirar a uma fossa sanitária,

Não fosse de debaixo duma árvore, uma velhinha

Os assustar, se calhar por isso, controlava o vento

Com o pensamento, depois de uma oração, inútil,

Ao anjo da guarda, que muitas vezes estava de folga,

Ao menos controlava o vento, já que não podia

Confiar em quem me oferecia amizade

E depois me rompia a pele e me humilhava,

Perante os velhos amigos, eu que o garoto novo,

Sempre o garoto novo, mas que controlava o vento

Com a minha vontade, invisível, como o anjo da guarda,

As calças impermeáveis Kispo em segunda mão,

Que a emigrante da França tinha dado,

Impossíveis de remendar, os joelhos esses,

Há muito curaram, também perdi a habilidade

De controlar o vento com o pensamento,

Assim como a fé na humanidade.

 

11/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva


quinta-feira, 3 de abril de 2025


 

Romã

 

Não há ciência nenhuma, em comer uma romã,

Talvez paciência, um pouco de sacrifício,

Quando cuidadosamente, se remove a película

E grão a grão, para um pequeno prato,

Meu amor, para tu comeres, como fazia a minha mãe,

A vida deve ser vivida assim, não te concentres

No amargo, saboreia cada pequeno grão rubi,

Cada momento precioso e dá o melhor de ti

Aos que amas e te amam, sabes meu amor,

A romã, é também, a minha fruta favorita.

 

03/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 


Autocarro para o Hipocampo

 

Aquelas três mulheres de calças brancas,

À espera do autocarro de regresso,

Depois de tardes de intensa transpiração

Num pequeno quarto alugado,

Naquele início de verão,

Nunca foram verdadeiramente três,

Foram quatro, cinco, nem todas calças brancas,

Uma nem de autocarro vinha,

Muitas vezes a esperei na estação de São Bento

E lá íamos até Gaia ver as cores crepusculares

Na da Ribeira, contudo, tornaram-se numa ideia,

As três mulheres de calças brancas,

Sem um aspecto definido, nítido,

Como tudo o que é sonho ou memória,

Sem uma origem específica,

É como se a essência do meu desejo

Se tivesse cristalizado naquela imagem,

Três mulheres à espera no hipocampo.

 

01/04/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva