terça-feira, 30 de março de 2010


Ao Pai

ao meu pai

Quando chove e nem uma gota na cabeça,
Levado pela mão com o casaco dele a cobrir menos os pés,
Apenas o cheiro da sua roupa nos olhos e uma escuridão segura,
Porque a mão a guiar-me os passos molhados.
Eu tão perto da sua cintura, um dia que serei maior, mas nunca tão grande.
Nunca terei umas mãos capazes de guiar no escuro de uma tempestade,
De abrir a terra e sempre com a timidez de uma carícia que só dentro,
Longe do granito áspero que as cobre.
Aquelas mãos e o cheiro do único deus real e possível debaixo do seu casaco,
Numa tarde de fim de verão, depois de deixar as armadilhas aos pássaros.

Queres vir comigo aos pássaros,
Porque ele quando pequeno gostava de ir aos pássaros.
Eu pequeno, eu um ele pequeno que nunca serei,
Cá dentro outro, que ele estranha, alguém novo na sua vida,
Eu que sempre o tive desde que abri a cor dos olhos.
Um dia com o filho
E eu a pensar que era por ele,
Porque ainda gostava de ir aos pássaros.
Subir montes, rasgar urzes, estevas, giestas, silvas,
Cruzar pinhais onde se adivinham cogumelos,
Levado pela mão criadora, que todos os nomes sabe.
A chuva a dizer que nunca mais e a tornar um só dia
Num dia maior.

Aquelas mãos que nunca lançaram comentários ao vento,
Nem críticas ao silêncio,
Incapazes de ferir por dentro.
Um muro de pedra a cercar um lameiro verde.

Pões isto na cabeça que ainda apanhas uma pneumonia,
Vindo de outro tempo, de outro mundo mais fatal,
Em que se ia aos pássaros, já que não havia muito mais para fazer,
Nem sobrava a carne na mesa.
Aquelas mãos forjadas na dureza,
Capazes de guiar uns pés pequenos, inseguros, no início de uma caminhada,
Que não se sabe se longa, até à escuridão inodora.
Pai é quando chove e nem uma gota na cabeça.

30.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

1 comentário:

  1. Não comento textos sobre pais. Mas ficam aqui as letras.
    Está lindo ...

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