segunda-feira, 29 de novembro de 2010



Saari


à filha de Louhi, donzela de Pohjala


A primeira vez que te vi foi a última em que chorei

E tudo o resto de ti será meu, um sonho, uma ilusão sem pernas,

Um engano que cresce e me ocupa o espaço do teu vazio.

A minha casa tornou-se um cofre ferrugento

Onde escondo o coração podre pelos anos que lhe foram arrancados,

Para lá chegar um lago frio e um barco velho e amaldiçoado,

Só desconhecidos se interessam pela visão fantasmagórica de um perdido.

Os sonhos são o que me resta das memórias que tentam outras realidades

Até a manhã fria vir a acariciar-me com a sua mão solitária de morte.

No final, nada interessa, o início um fim que se prolonga até nada,

O chão salgado na hora da partida e no ar um silêncio perdido,

Um não vás, suspenso, um para sempre mentido de todas as vezes

Que o coração conta menos um, menos um e o relógio concorda.

Se um momento é perfeito e valeu a pena,

O horizonte onde se respira, longe, o corpo um milhão de cores,

A terra toda e o corpo mergulhado ao nosso lado a sorrir, sincero,

Sabes que o fim irá trazer a dor do vácuo contra o miocárdio,

Que suga para o nada, buraco negro em miniatura.

A bicicleta leva-te e o vento traz-me a dor do teu perfume longínquo,

O teu cabelo esquecido na minha camisa de cor cansada,

Que guardo dentro de um livro de poemas do Bukowski,

Até me esqueceres, até o teu corpo acolher o esquecimento de uma ejaculação

Estranha e que me trespassará a honra, mesmo sabendo que acabei

E que nunca usei antes tal palavra inútil nestes dias.

Mil vezes perdi e tão poucas me sentei à sombra dos dias quentes,

Mil quilómetros de mão no ar a dizer adeus, nunca sentindo a despedida como certa,

Até à primeira vez em que te vi, olhar nos meus olhos, tornares-te distante,

Estranha, menos verde, mais memória de um Verão de luz doce

Que a chuva turva na hora de trancar o cofre e fingir que a vida continua.



29.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

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