quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


"Também Há Macieiras No Inferno" (excerto)

O relógio parado na parede da gente abandonada pela gente e pelo tempo, naquele andar na cidade grande, antiga, velha, não me dói nem metade nos olhos de dentro do que doeu o cão abandonado nesta aldeia há muitas vidas atrás, com um olhar a pedir morte, com chumbo no corpo escanzelado até não poder mais com o peso por causa do sangue que perdeu, até aquele palheiro escuro, sempre de portas abertas para quem quiser ir morrer ou fazer pela vida. Agonia em olhos castanhos que se tornavam líquidos nos meus, agonia em olhos castanhos de cão a sentir-se além dos meus feios de gente, ainda gente, esforçando-me por manter dentro o estado que dentro, líquido, como o que a vesícula biliar reserva, como se nos olhos, como se os olhos a engolir em seco, com uma garganta mais seca que o pó do caminho, hoje. Deus não sabe o que chorei naquela noite, porque deus não sabe merda nenhuma, se soubesse existia e poupava pelo menos os cães à crueldade dos homens, dos que vem com a enxada para acabar com o trabalho.

Ide para casa garotos que eu trato disto.

Como se disto em vez de dele. Filho da puta, que lhe quis matar os cães todos, sem culpa eles, mas também eu humano porque nisso me tornaram. Filho da puta que não me poupou à enxada a entrar pelo palheiro e eu criança, conhecendo a morte das moscas, das galinhas a caminhar degoladas, do sino quando tocava e era menos uma pessoa que se via pela rua, não me poupou a um ganir sem vontade, um crânio a estalar e um cão morto, mais um isto. Hoje coitado, o filho da puta que nem com o cão aos pés dele lhe acertaria, tão velho e com os seus cães mortos da tinha, os filhos longe, a mulher que tem engordado tanto que já não lhe chega, nem mesmo se a enxada se levantasse e um crânio de cão que não faz mal a nada, quanto mais a ninguém. Não me pouparam às misérias, por isso nunca me senti especial: especiais são os ignorantes que cresceram dentro de paredes de algodão doce, sem janelas para a miséria, às costas de um nome, de um esforço que nunca tiveram que fazer, quase irreais. Pode não lhe vir uma enxada aos cornos, depois de uma caçadeira lhe crivar a carne de manias, mas a gadanha é para todos. A bilirrubina sérica a pôr amarelo nos olhos da gente. Não choro: já passou.

João Bosco da Silva

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