Sonho Em Veneza
É difícil perdermo-nos em Veneza, lá, está-se sempre num
sonho, não se sente
Fome ou cansaço, os olhos engolem o corpo todo e por osmose
absorve o que
A alma pede, não deixo de sentir inveja dos que aqui vivem,
os seus altos e baixos,
Todos os dias, tão mais belos que os meus, sobe-se, desce-se
e sempre uma recompensa,
Ao se sair de uma rua escura e estreita uma praça que abre
tanto os olhos que não bastam
E pedem também a boca para se engolir tanto fascínio,
entra-se na igreja de S. Pantalon,
Olha-se para cima e sente-se o peso do Síndrome de Stendhal
a espremer-nos até
Ao limite da beleza suportável em tons escuros, não se pode
ter medo de morrer em Veneza,
Penso até, que aqui, se recebe a morte sem tristeza, mas com
romantismo, talvez um pouco
De melancolia, mas não da que o português sente, mais
daquela de passar por uma porta
Aberta e ouvir um ensaio das Quatro Estações no berço de
Vivaldi, é verdade que aqui não
Se deve beber muito à noite, a não ser que se tenha um anjo
da guarda atento, gondoleiro,
Aconselha-se a vista desarmada e sem medo de encarar decotes
ou olhos de gelo com vontade
De serem penetrados enquanto pálpebras se apertam em mais um
canal e a gôndola passa,
A espuma da cerveja aquece, está-se num sonho, ao lado da
Hostaria Venexiana, à espera
De uma morte do que se esqueceu de acordar, sete horas
depois do almoço, ainda com a
Piazza S. Marco a latejar profundamente, desde o córtex occipital
ao frontal, atravessando
Em linha recta as memórias congénitas do hipocampo, um dia
voltarei com a impossibilidade
De regressar acordado, lá, só um avião me conseguiu
beliscar, enquanto o Sol se deixava levar
Pela cidade a acender-se nos canais, mesmo assim, sorri, com
a mesma seriedade com que
Cada pedra foi colocada em cima de estacas de madeira vindas
da Eslovénia, Croácia e
Montenegro, cada canal violado com a inocência da fome dos
turistas, que lhe perdem
Tempo em montras com nomes que se encontram também no Japão,
como também o cheiro
A gasolina e protector solar, os dentes americanos mastigam
quantos dólares uns sapatos
E o seu tamanho perante a beleza da sereníssima, nem a pele
queimada pelo Sol se lembra
De despertar, só a de fora contra os olhos e toda a fome de
sonho, de sombra e frescura,
E ainda dizem que Veneza é melancólica, nunca viram a
invicta do império que levou
Ao dito declínio da que se afunda no Adriático, enquanto com
o vibrar de cordas
No crepúsculo, ressoa no coração amargo de um poeta, é
decididamente mais fácil
Morrer-se em Veneza
que nos perdermos lá, só o coração se perde entre o corpo e o sonho.
Veneza
01.08.2013
João Bosco da Silva
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