quinta-feira, 29 de maio de 2014

Roupa A Secar

A farda seca no estendal de parapeito, ela poderá estar em casa,
Ou numa magra folga, se calhar foi à aldeia ver a mãe que não fala com a avó,
Ou está em casa só, deitada na cama, imaginando encontros com quem lhe
Tocou de leve o passado, com um olhar, uma palavra ou outra e pouco mais,
Nada de promessas, ainda sente o gosto daquelas tardes de início de Verão,
Trancada até à noite com aquele corpo que parecia nunca se saciar do dela,
Se calhar é uma daquelas tardes ainda, e ela recebe sedenta o prazer
Que lhe impingem na carne, diz que nunca teve um orgasmo, mas mesmo assim
Gosta de foder como se não houvesse amanhã, na rua veste-se de timidez,
Mas o olhar trai-a sempre, os homens despem-na tantas vezes, se calhar por isso
A farda no estendal, a secar da saliva, como o esperma na sua pele depois
De lavar a alma com a certeza da carne, ela sabe que não passa daquilo,
Por isso abre-lhe os lábios e derrete-se toda, arrisca-se a um futuro comprometido
Apesar de se fingir sem ilusões, lá no fundo deseja uma concepcão que prenda,
Que a livre das calcas da farda, mas para isso tem que encontrar algo mais
Estável que o desejo e o prazer limpo de outros interesses futuros,
Pode estar à beira rio, no aniversário de alguém, a frisar o cabelo com o suor
Enquanto apanham morangos do outro lado, ela toda famas e olhos,
No frigorífico o mínimo para ir enganado a fome, ou entreter entre coitos,
O mais certo é estar a trabalhar, com a vontade de outro lado, pensando
Em férias num lugar que imagina da boca dos outros, ou das fotos que lhe
Obrigaram a engolir, como submissão, deve estar a trabalhar, para acabar
Mais um dia numa casa alugada, com uma renda que lhe leva metade do salário,
Encerrada num quarto quase privado, não fossem as discussões constantes
Dos vizinhos, acentuando mais a sua solidão, mais um dia para menos um dia,
Após dia, todos os sonhos adiados, quem se perdeu longe, quem se dá
Sempre ao lado da vontade, vai-se andando, vai-se quase sendo, lavando a farda,
Sujando a farda, acumulando dias inúteis para nós mesmos, sepultando-nos
Até nada mais restar, do que roupa esquecida no parapeito de uma janela,
Para a curiosidade mórbida de quem ignora a cor dos nossos olhos.

28-05-2014

Turku


João Bosco da Silva

Sem comentários:

Enviar um comentário