Lembras-te daquela tarde quente, sentado no muro de pedra
entre o lameiro
E o souto, enquanto as vacas pastavam, apanhavas grilos, que
esmagavas um atrás
Do outro, misturando-os, misturando os corpos pequenos numa
massa
Informe de grilo, duas pedras planas, uma maior, uma mais
pequena,
E os grilos entre elas, esmagados, polpa de insecto,
raspavas tudo para cima de outra
Pedra lisa e misturavas aquilo com uma pauzinho e saliva,
saías da sombra, voltavas
Ao lameiro, apanhavas mais uns quantos e continuavas a
chacina,
Distraído da crueldade do mundo, calmo como só as crianças
conseguem
Quando estão no seu mundo, as pedras a bater uma na outra e
menos uma vida,
Tu só querias que todos fossem um, sentias um estranho
sentido erótico
Naquilo, algo que não compreendias, um orgia de polpa,
patas, antenas,
E eras todo calma enquanto as vacas pastavam, também distraídas
De tudo, como sempre, todos nascemos vacas e psicopatas,
alguns encontram
A culpa, afogam-se em moral, perdem-se, outros fecham o
livro que estavam a ler
Porque sentem que um monte de pasta de grilos lhe está para
sair pela boca fora,
Como nas noites em que se come pouco e se bebe demasiado, em
busca
Da serenidade das tardes quentes em muros de granito,
esmagando segundos
Como grilos e vice-versa, fecham o livro e correm para o
papel e vomitam
Tudo, não há inspiração, só urgência, não há imaginação, só
memórias
Misturadas, rasgadas, uma pasta de memórias, memórias de
grilo,
Não te sentes culpado, sentes inveja da liberdade que um
dia,
Da perversidade inocente que trocaste pela maldade forçada da
experiência,
Agora volta para o livro, onde não estás, esconde-te, és um
monstro que cresceu,
Tens a alma amaldiçoada desde que não morreste quando
nasceste fora do teu tempo.
Turku
João Bosco da Silva
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