Cemitério Judeu
A mesa está suja, é branca, mas sinto-a quando lhe passo os
dedos,
Antes de escrever, um último pedido aos sentidos, sentir
algo recente,
A sujidade da mesa, branca, deve ser cerveja seca, ou açúcar
da chávena
De café, ou o resto de um sonho que salpicou para aqui,
estava no Brasil
Mas não havia sotaque e a cidade parecia do norte da Europa com
Um clima tropical, uma utopia, como sonhar África num
Inverno eterno
Uma distopia, não me interessam os sonhos que me querem
contar
Hoje, é a minha vez, sonhei tantas vezes com um cemitério a
transbordar
De lápides, a verter ossos das costuras, num estranho
crepúsculo
Entre o cinzento e o vermelho agónico de uma estrela
moribunda,
Lápides cheias de anjos e santos e esperança na
ressurreição,
Afinal, o homem que dava vida ao barro ali, noutro cemitério
bem real,
Judeu, em Praga, acordado, num cemitério vazio à espera de
almas vivas,
Únicas possíveis, atolado de corpos e lápides, um mar de
lembranças desesperadas,
Onde estará o golum, ou o barro que resta dele, a estas
horas,
Em que todos os sonhos se revisitam acordado e perdem a
doçura
Da impossibilidade, a segurança do sono, a mesa está suja,
Sinto-a com estes dedos despertos, estes dedos fora de
qualquer
Corpo, neste momento, olho-os e vejo-os, sinto-os, longe de
mim,
As unhas, sempre curtas, a acumular epitélio, secreções,
muco,
Sonhos despertos no toque, agora cemitérios, desses corpos,
Mesmo que as almas ainda neles, e este poema uma vala comum,
Como outros poemas têm sido, escavados com estes dedos,
Estes assassinos de sonhos, estes imortalizadores de
ilusões,
Estes espadas de anjos a expulsar de paraísos impossíveis,
A mesa é branca e está suja, não me lembro de ter lá escrito
nada.
Turku
14.11.2014
João Bosco da Silva
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