sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Cemitério Judeu

A mesa está suja, é branca, mas sinto-a quando lhe passo os dedos,
Antes de escrever, um último pedido aos sentidos, sentir algo recente,
A sujidade da mesa, branca, deve ser cerveja seca, ou açúcar da chávena
De café, ou o resto de um sonho que salpicou para aqui, estava no Brasil
Mas não havia sotaque e a cidade parecia do norte da Europa com
Um clima tropical, uma utopia, como sonhar África num Inverno eterno
Uma distopia, não me interessam os sonhos que me querem contar
Hoje, é a minha vez, sonhei tantas vezes com um cemitério a transbordar
De lápides, a verter ossos das costuras, num estranho crepúsculo
Entre o cinzento e o vermelho agónico de uma estrela moribunda,
Lápides cheias de anjos e santos e esperança na ressurreição,
Afinal, o homem que dava vida ao barro ali, noutro cemitério bem real,
Judeu, em Praga, acordado, num cemitério vazio à espera de almas vivas,
Únicas possíveis, atolado de corpos e lápides, um mar de lembranças desesperadas,
Onde estará o golum, ou o barro que resta dele, a estas horas,
Em que todos os sonhos se revisitam acordado e perdem a doçura
Da impossibilidade, a segurança do sono, a mesa está suja,
Sinto-a com estes dedos despertos, estes dedos fora de qualquer
Corpo, neste momento, olho-os e vejo-os, sinto-os, longe de mim,
As unhas, sempre curtas, a acumular epitélio, secreções, muco,
Sonhos despertos no toque, agora cemitérios, desses corpos,
Mesmo que as almas ainda neles, e este poema uma vala comum,
Como outros poemas têm sido, escavados com estes dedos,
Estes assassinos de sonhos, estes imortalizadores de ilusões,
Estes espadas de anjos a expulsar de paraísos impossíveis,
A mesa é branca e está suja, não me lembro de ter lá escrito nada.

Turku

14.11.2014


João Bosco da Silva

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