O Caminho Até Ti
Podias ser salvo se te conseguisses encontrar naquele
caminho em direcção aos soutos,
Onde leste em cima de um muro de granito um dos primeiros
poemas num livrinho vermelho,
E eras capaz de sonhar com as mãos limpas e capazes de
grandes coisas, as limitações
Eram espaço vazio para encher com experiência, imagens
palavras, converter a vontade,
Podias encontrar-te se ainda olhasses as montanhas no
horizonte carregadas de promessas
E misticismo e visses além de onde te encontras agora, sem
velas, num atol estéril
Contaminado pelo exposição progressiva ao tempo, mas não,
passas pelos silvados
E ignoras as amoras, mesmo ao fim do dia, não te dás ao
trabalho de trazer aquela tarde
No poço apanhando rãs, cansa-te apanhar as flores percursoras
da Páscoa para levar à mãe,
Já não te sentas na varanda a disfrutar do passar lento dos
dias, passam sem chegares a
Saber-lhes o sabor, na tua boca apenas um gosto amargo do que
ficou por fazer,
Não te fascina mais o vermelho dos olhos fechados contra o
Sol, uma necessidade apenas,
Poupas a pele à erva seca por conformismo com o
entorpecimento e para evitares a dor
Vives como um morto, já não deixas copos meios cheios no
cemitério, na noite da festa,
Não te queimam com cigarros no chão do mesmo caminho, depois
do banho de estrelas
E de outro corpo ao ritmo dos grilos e da rotação da
via-láctea, o muro agora tem cimento,
Podias ser salvo se ainda restasse em ti um pouco de alma,
mas foi-se como a infância,
Nem tiveste que a vender ou trocar por algo vão, o tempo é o
Diabo e o inferno a relação
Do nosso corpo com ele e tu nunca poderás ser salvo, mesmo
que agora já não uses relógio
De pulso, sabes que ainda és tu, que é teu o fantasma que
trazes dentro, cheio de memórias
De outra vida, porque nunca soubeste ver as horas em
relógios de ponteiros e sabes
Que além, no caminho por trás do souto, encostado ao muro,
havia um silvado do teu tamanho,
Onde te abrigaste de uma tempestade entre a tua mãe e a tua
avó e tiveste medo, hoje não há
Nada, só pedras descarnadas do muro, agora os teus passos
arrastam a única tempestade
E não tens refúgio no deserto que plantaste, a não ser que
te encontres naquele caminho
Em direcção aos soutos, sacudas o pó e tires a tinta com que te foram
pintando pelos anos fora,
A não ser que reaprendas a ver daquela forma que o tempo te
fez desaprender.
Turku
02.11.2014
João Bosco da Silva
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