Encher Chouriças
Enquanto o sangue pinga para o chão da garagem, já tenho as
tripas lavadas
Com a água fumegante do rio numa manhã de geada, é o que
isto é,
Um poema nos olhos dos outros, as palavras não perderam a
cor com os anos,
Continuam as mesmas a gozar com as têmporas nevadas pelos
desgostos,
Ou nem por isso, só a vida, os dias somados a fazer anos e
aqui se está,
A engolir segundos atrás de segundos sem gelo, porque chega
o frio que está
Fora a reflectir a distância glaciar do que dentro se
esgota, ambos sabemos
Que não há salvação, por isso continuamos, olhamos o rio num
dia de Verão
E somos nós, tentamos ignorar os sacos no fundo que foram
arrastados
Desde a ponte e agora só ossos de cães e gatos mal nascidos,
nós aquilo tudo,
Aqueles cadáveres inocentes e indesejados, frascos de
herbicida, pneus,
Uma pá enferrujada, peixes asfixiados pelas oscilações dos
vizinhos,
Gota a gota, o caudal engrossa à necessidade de pontes, de
abraços,
Ou apenas a vontade deles, porque a distância, sempre a
distância
E somos todos uma cambada de hipócritas, porque quando
perto,
Todos cheios de espécies e cerimónias, bichos brutos com
talheres de prata,
Às vezes é preciso parar na ponte romana para respirar um Kentucky,
Ou esperar pela noite para revelar a amizade sincera, é o
que nos salva
Do ruído, tanto ruído, cada vez mais ruído, nem se consegue
fazer barulho
Nos ouvidos dos outros, dos que merecem ouvir, dos que
precisam ouvir,
Mas não conseguem, tal é a saturação da diarreia bem
sustentada
Por nomeações de direitos entre eles, a estas horas devem
estar
A banhar a carne em vinho, tu conheces bem o meu hálito,
apesar
De lavar os dentes com a cinza dos anos e ela ser sempre
fiel ao irrepetível,
Ambos gostamos à nossa maneira dos grilos no Verão e dos urinóis
Em horas de aperto, apesar de o cheiro a ureia me fazer
lembrar
Grades de snappy e de tupperwares quentes envolvidos por
panos
Da cozinha, em postos da guarda-fiscal em mil novecentos e
noventa,
E da boleia do padeiro a quem dava um Fernando Pessoa por
pão
Quando a mãe me dizia que já era um menino grande,
E as geadas sempre foram tão grandes nas mãos pequeninas,
Mesmo com luvas que esticam, e sangue que pinga, uma última
gota,
Confunde-se com a cor do vinho, seja como for, agora é
cortar,
Curar, seja à força do sal, da distância ou do fumo da
memória,
Nós sabemos o segredo, só ainda não o conseguimos trazer à
consciência,
Traduzi-lo em palavras, mas estamos mais perto, hajam
pulmões
Para deixar anéis de sangue nos lábios dos brutos, as tripas
das chouriças
Estiveram em vida, cheias de merda, existe algo de delicioso
nisto tudo,
Tudo é, morte e vida, engolir e deixar passar, até cair,
como tudo em nós.
19.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
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