Escorpião Esmagado Na Calçada
Não sei como te explicar a surpresa de um escorpião debaixo
de uma pedra
À distância de uma calçada tão gasta como ignorada, se te
pudesse
Justificar o peso do meu sotaque com a densidade daquelas
manhãs
Afogadas em nevoeiro, por trás de cada giesta um reino
inteiro à espera
De ser reconhecido como real, e nós acendíamos cigarros às
escondidas
Com uma crueldade infantil, mas como te fazer ver que os
ramos dos castanheiros
Se moviam por algo mais que o vento, o medo inocente que
brotava das
Histórias contadas envolvidas por lenços de luto e falta de
dentes,
Um olhar verde é só um olhar verde numa tasca da capital, numa
rua com nome
Azedo e de vergonha às glórias passadas, e as palavras que
correm
São apenas água de um ribeiro desconhecido e só com nome lá
na terra
Onde usam a água para regar os feijões, nos cemitérios
apodrecem sem nome,
Só na memória se espreme a muito custo a imagem daquele
cansaço último,
Mas como poderás entender o desespero da última cerveja
entre solidões
Cansadas de tantos dias, a resignação do bagaço nas manhãs varridas
pela vassoura
Contrariada do náufrago envolvido por um avental manchado,
Podia dizer-te que tento, que tentei, mas não é verdade, já
é tão difícil ser,
Não interessa o interesse das pupilas saturadas pela ausência
de carne e de luz,
O escorpião com o seu poder concentrado de dor, debate-se contra
um pau
Inocente empunhado por uma morte certa, é duro e no entanto
tão frágil
Sob os olhos curiosos de um mundo por fazer, calçada abaixo
até aos olhos de frasco,
Habituados ao museu de história natural que estranham a vida
num escorpião.
28.03.2016
João Bosco da Silva
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