Voyeur
Uma loira acende um cigarro na varanda, passa uma mulher com
um colchão na cabeça,
O semáforo dos peões fica verde, ninguém atravessa, começa a
cair uma neve desavergonhada,
Um par acaba as cervejas e trocam olhares nervosos de quem
não sabe o que fazer com a boca desocupada,
O homem vai buscar mais duas bebidas e respira de alívio,
entra um grupo de estudantes de arte
E sentam-se à janela a esboçar, uma delas com o cabelo azul-bebé,
um deles olha para mim e sorri,
Vê-me de caneta na mão, uma loira regressa de fumar, está
só, vai buscar um café, entra quem ela esperava,
Tem um canino encavalitado, não consegue agora conter os
dentes em alvoroço, um dos pares vai-se embora,
Se calhar o nervosismo era aborrecimento dele, o pé
finalmente parou, separam-se na rua sem beijo
E ela logo pega no telemóvel quando ele entra no carro,
uma das estudantes está a deixar secar a tinta
Da ponta da caneta, está à espera que a mosca da inspiração
lhe entre na boca, lembro-me de Bukowski,
De uns poemas de Bukowski, da visita num dia cinzento como
este, já me começa a doer a mão,
A loira continua a fumar na varanda, a outra loira sorri de
café nas mãos, a de cabelo azul continua
A procurar a mosca no ar, desta vez atravessaram no semáforo
verde, agora uma miúda espera o próximo
Enquanto fala ao telemóvel e dois flocos de neve caem um de
cada lado dela, a loira entra em casa,
A loira abre as pernas em direcção ao amigo, os estudantes
de arte bocejam, menos dois que se engatam,
Descanso a mão para a punch line, a neve continua ridícula,
os peões atravessam, dois miúdos sentam-se
Onde estava o par sem vontade, a loira acende a luz, muitos
cigarros foram os últimos, muitos os primeiros,
Muitas passadeiras as últimas travesseias, muitas portas fechadas
as últimas despedidas que se batem,
Muitos olhares que nunca mais neles, muitas vidas que se apagaram
entre uma luz vermelha e verde,
No entanto, a vida continua, sempre e alguém se sentará
nesta cadeira, ainda antes de ela arrefecer de mim.
Turku
14.04.2017
João Bosco da Silva
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