Epitáfio
O que me falta salvar com a minha ilusão, levo meia dúzia de
mulheres,
As outras que me perdoem, não tenho tanto espaço no coração
como
Nos tomates, alguns cães e outros ossos que encontrei no
monte,
Gatos que se despediam como se soubessem, mesmo parecendo
imortais,
Parecem sempre imortais os gatos, livros não precisam
salvação, li-os,
Gosto de passar os olhos neles e sentir que vivi, mesmo só,
Que mais me falta salvar com a minha ilusão, o sorriso dos
amigos mortos
Nas manhãs frias da matança do porco, os avós que quase
todos juntos,
Alguns bêbados da terra, aqueles malucos cuja lucidez para
muitos loucura,
Todos aqueles momentos que os dias vão apagando um a um,
para dar espaço
Ao que nunca valerá a pena salvar, há tempos que nada merece
um verso,
Mais duas semanas enclausurado no meu próprio purgatório,
Colecionando vazios e medos, crepúsculos que duram a noite
inteira
E a noite nem chega, a estas horas devem estar a acabar o
jantar,
O meu pai sempre o último a levantar-se da mesa, deve roer
uma maçã,
A minha mãe deve olhar da janela da cozinha e lembrar-se de
como
Eu gostaria de ter visto aquele céu incendiado, nem uma
cerveja no frigorífico,
Que mais me falta salvar, já a ilusão se perde, como os
muros de pedra que pareciam eternos,
E agora amontoados de esquecimento ou blocos de cimentos erguidos
com desprezo,
Vi a minha avó morrer anos antes do seu funeral, a ilusão
também não a salvou,
Escrevo poesia, ou isto, seja o que for, porque nunca
aprendi a perder para sempre.
18.05.2020
Turku
João Bosco da Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário