segunda-feira, 18 de maio de 2020


Epitáfio

O que me falta salvar com a minha ilusão, levo meia dúzia de mulheres,
As outras que me perdoem, não tenho tanto espaço no coração como
Nos tomates, alguns cães e outros ossos que encontrei no monte,
Gatos que se despediam como se soubessem, mesmo parecendo imortais,
Parecem sempre imortais os gatos, livros não precisam salvação, li-os,
Gosto de passar os olhos neles e sentir que vivi, mesmo só,
Que mais me falta salvar com a minha ilusão, o sorriso dos amigos mortos
Nas manhãs frias da matança do porco, os avós que quase todos juntos,
Alguns bêbados da terra, aqueles malucos cuja lucidez para muitos loucura,
Todos aqueles momentos que os dias vão apagando um a um, para dar espaço
Ao que nunca valerá a pena salvar, há tempos que nada merece um verso,
Mais duas semanas enclausurado no meu próprio purgatório,
Colecionando vazios e medos, crepúsculos que duram a noite inteira
E a noite nem chega, a estas horas devem estar a acabar o jantar,
O meu pai sempre o último a levantar-se da mesa, deve roer uma maçã,
A minha mãe deve olhar da janela da cozinha e lembrar-se de como
Eu gostaria de ter visto aquele céu incendiado, nem uma cerveja no frigorífico,
Que mais me falta salvar, já a ilusão se perde, como os muros de pedra que pareciam eternos,
E agora amontoados de esquecimento ou blocos de cimentos erguidos com desprezo,
Vi a minha avó morrer anos antes do seu funeral, a ilusão também não a salvou,
Escrevo poesia, ou isto, seja o que for, porque nunca aprendi a perder para sempre.

18.05.2020

Turku

João Bosco da Silva

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