Continuar a Tentar Ser Algo que Nunca Fui
Um dia Paris, ou outra cidade qualquer com que se fazem
Os clichés, e nos longe, sempre, todos os reecontros impossíveis,
Os aeroportos fechados por causa de algo demasiado real
E próximo como uma pandemia ou uma guerra, não há mais
Tragédias que existam apenas na ficção ou nas histórias dos
velhos,
Até a morte do melhor amigo, que mais desta vida,
Que mais nos arrancará os ossos sem tocar na pele de
tik-tok,
Ou a merda com que enchem os olhos nestes dias,
Tenho a idade para ter inventado meia-dúzia de deuses,
Ou ter-me tornado num profeta, para santo já sou demasiado
velho,
Como sou velho para sonhar novos sonhos, mesmo até
Para ressuscitar os que a vida tornou obsoletos ou infantis,
Ao que parece, as Syrah, estão a rebentar, quem diria,
Ainda consigo criar alguma vida, mesmo num papel de deus,
Sem tocar, sem abrir a terra, sem puxar a água, distante,
Será esse o meu epitáfio, “foi distante”, e nada me
descreverá
Com maior fidelidade, mas nós longe, há demasiado tempo,
É estranho, como o que foi perfeito durante umas horas,
Foi mantido durante décadas impossível, como se o mundo
Em risco, enquanto consumíamos a escuridão de uns quartos
Alugados numas cidades ignoradas pelos alvos das ogivas
nucleares,
A estas horas, começar um poema parece-me tão ridículo
E ao mesmo tempo é tudo o que posso fazer, para provar que
vivi
E estou vivo e perdi a força para dizer não ao impossível,
Cheguei ao tempo em que o real me leva o melhor amigo
E o amor é algo que todos os dias me convenço que é o que
for,
Um copo vazio, uma garrafa vazia, uma varanda um cemitério,
Um dia Paris, como Londres foi uma despedida que durou
Menos de um ano, ou mesmo o Porto, onde me despedi de mim,
Ridículo para sempre, tornar vergonha em aversão,
Um dia Paris, ignorando os fantasmas, a pele das mãos
Que já longe dos vintes, o cansaço que tão ávido se
apresenta
Para tomar conta do resto dos dias, os grilos que tanta
falta fazem
Nas noites quentes, mesmo quando só queremos olhar o céu
E ver pedaços de pedra rasgar o firmamento com riscos de luz e
nada,
Esse ridículo maior de continuar a tentar ser algo que nunca
fui.
10.04.2022
Turku
João Bosco da Silva