quarta-feira, 9 de novembro de 2011


Pseudo-Biografia




para o Armando Pinto,




Não sou quem escolhi ser, porque não escolhi ser espancado num dia de chuva

No regresso a casa depois da escola, por miúdos do sexto ano, quando eu na segunda classe

De uma escola nova, mas por isso mais tarde, escolhi não mijar na garrafa da menina

Mais pobre da escola, ainda mais pobre do que nós. Hoje podia gostar de Sol

E praia, ter cor na pele, mas parti para as montanhas aos sete anos, regressei

À minha terra, quando nunca tive mais nada a não ser os olhos e a pele e às vezes

Ouvidos, porque nem sempre ouvia o que me diziam para fazer ou não fazer

E tudo muitas vezes foi uma reacção a ordens, conselhos, se me tivessem dado

Mais silêncio, talvez hoje não procuraria o som mudo das palavras interiores,

Mas se tivesse ficado na praia, nunca teria conhecido o meu melhor amigo definitivo,

Que durou o que me sobrou da infância e o início da adolescência e apesar

De ele não gostar de ler, começamos a partilhar bandas desenhadas compradas

No quiosque da vila, desenhávamos os nossos heróis e nos montes, tardes inteiras,

Éramos esses heróis, em vez de arranha-céus, fragas enormes, que com o tempo encolheram

E hoje fazem parte dos meus ossos, não porque as escolhi para serem esqueleto.

Gosto mais de cães porque chorei demasiado por gatos, com gatos,

Quando a menina da rua de baixo da aldeia dos meus avós, raptou-lhes o gato cinzento,

É sozinha, dizia a minha avó, e ainda hoje me lembro da sua cara sem cor, sem expressão,

A olhar-nos, a mim e aos meus primos, atrás das saias da avó, com o nosso gato ao colo,

Todos depois desse faziam-me sangrar à menor tentativa de um carinho,

Todos os meus, mortos e um pedaço de terra revolvido e a ideia daquele pêlo todo

Imóvel a deixar-se consumir pelo tempo, depois vieram os cães, e nunca vi nenhum morto,

Apesar de no tempo da caça de anos depois de fazerem parte da família,

Alguém dizer que o encontrou morto e o meu pai mais uma vez a revolver a terra,

Hoje não tenho animais, mas o desejo de uma companhia sem palavras prevalece.

Prefiro as aldeias porque nunca fui tão feliz como numa aldeia, nem tão criança,

Nem tão verdadeiro, vê-se a origem de tudo e sempre soube que o leite

Vinha das vacas, vi o leite a ser ordenhado das vacas, bebi o leite fresco de um balde,

Aquecido num púcaro de latão na lareira da minha avó e nunca vi um preservativo usado

No passeio de uma aldeia, apesar das ruas todas serem um passeio,

Mas a cidade fez-me crescer, se crescer é perder a inocência, tornar-se mais duro,

Mais frio, mais preparado para a multidão de vozes insensíveis em que se tornou o mundo,

Mas não escolhi ir para a cidade, segui o que esperavam de mim, porque na verdade,

Eu nunca esperei nada de mim, a não ser tornar-me algo, que no fundo, me tornaram

E hoje sou apenas o acumular das escolhas que não fiz e dos fracassos que não consenti,

Mas alegram-me as recordações das pequenas coisas que hoje são eu, o pão caseiro

A escorrer de manteiga nas mãos do meu primo favorito, de manhã, antes de irmos todos

Juntos para a escola, o relógio da minha tia pendurado na lareira e aquela lareira sempre

Tão quente nas manhãs frias da serra, aquela casa tão quente hoje, nos Agostos

Onde me convenço que foi melhor assim, de outra forma, hoje seria outro qualquer.





09.11.2011





João Bosco da Silva





Turku

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