Lista
ao menino jesus
Quero correr pelos montes até o meu cheiro se confundir
Com o das giestas, das urzes, da resina dos pinheiros, dos pinheiros,
Do musgo fresco, da terra aberta, dos carvalhos, das rochas húmidas,
Dos animais que deixaram rasto, dos que se cruzam comigo,
Do húmus, dos cardos e dos fetos,
Do covil escondido, dos ninhos, das asas que se abrem no ar,
Do que ardeu no verão passado e renasce!
Quero jantar com os amigos que me fizeram,
Comer uma posta mal passada de vitela ainda a sangrar, criada nas redondezas,
Pelo avô de alguém conhecido, com batatas fritas arrancadas pelos dentes metálicos
De alguém honesto e por isso com calos nas mãos,
Perto da lareira do restaurante da beira da estrada!
Quero arroz doce para sobremesa, quase como o da minha avó,
Quase como o da minha mãe, mas sem os desenhos com o pó de canela!
Quero acabar com a cerveja fresca do tasco de uma aldeia pequena,
Fazer dela o mundo todo de uma noite!
Quero gritar sem camisa no meio do asfalto, ignorando outras presenças que não
A dos que me fizeram.
Quero entrar numa mulher portuguesa e que ela me entre dentro,
Me sinta além do corpo, além do verde dos olhos que por vezes mentem,
Como todos os olhos de gente e goste de mim porque sou tão vulgar!
Quero dar-lhe o mundo todo numa noite e se sobrar algo de mim,
Deixar que cresça no amanhã para quem vier!
Quero estar no café da terra até fechar, beber e conversar com os que bebem e vivem,
Comungar de uma cerimónia mais sincera e real pela noite dentro,
Conversando sobre o que vagamente conhecemos e é o que temos,
Gozando com a miséria que é a mais miserável das coisas,
Mestres das coisas simples da vida!
Quanta sabedoria desconhecida numa cerveja entre amigos,
Da que não se ensina na escola: na escola não ensinam a felicidade!
Quero ler Miguel Torga com geada da manhã trasmontana além da janela,
Junto à lareira com as brasas que saltam ameaçadoras, violentas contra as pantufas de avô,
Com uma torrada de pão centeio na mão, brilhante do açucar!
Quero sentir-me no que ele escreveu, acreditar que sou capaz e especial,
Apesar de ter nascido da esterilidade da rocha de granito!
Quero atravessar o Marão num autocarro de carreira,
Dos que estão sempre atrasados e por isso não vale a pena correr por eles,
Demorar quatro horas porque cai neve, sem me importar porque estou mais perto do céu!
Quero olhar de cima as aldeias pequenas com a sua gente grande
A lutar pela vida, a viver, ignorando que eu de cima a passar, a imaginar que vida!
Quero comer um salpicão assado na brasa na cozinha dos meus avôs,
Com os pingos do fumeiro que seca como chuva gordurosa e animal,
Mais divina que outra impossível!
Quero passar o serão a jogar à bisca dos nove com o meu avô,
Ignorando a sua batota anciã, até à hora de ir dormir numa cama que foi de um dos tios da França!
Quero acordar cedo e caminhar pelos caminhos de gente e animais
Em direcção às montanhas que nunca chegam,
Até a um lameiro com erva fresca onde possa deitar-me e apagar a minha sede de Anteu!
12.12.2009
Savonlinna
João Bosco da Silva
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