terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Que interessa o que o mundo,
Quando o teu mundo só teu?
Cumpriste como só tu podias cumprir,
O que esperavam de ti era só o que eles esperavam.
Só porque um caminho menos escolhido, errado?
Putos idiotas, todos, porque tu da idade do tempo.
Quantas gerações se tornaram aborrecidas,
Enquanto tu ainda a festejar, bêbedo mas a festejar.
Putos parvos quando crescem e se tornam sérios,
Sérios amargos cheios de ressentimento porque o tempo os obrigou
A ser adultos sérios e responsáveis.
Sérios são os mortos quando não morrem a sorrir.
Amanhã não quero morrer que é festa,
Haverá a festa, mas tu já não estarás,
Porque a tua festa, que foi a vida, acabou.
Puto, diz-me ele, vós é que estais todos mortos.
13.02.2010
Savonlinna
João Bosco da Silva
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
É O Que Se Arranja
Quando há demasiado vazio, aquele que nos empurra para a
inconsciência
Do sono, os vidros das janelas demasiado silenciosos, nem
embalam
O ritmo dos versos que dentro a fazer de ovelhinhas a adiar
a queda,
É o que acontece, quando a chávena quase vazia e a garrafa a
ser só ecos
Dentro, enquanto se espera uma resposta ou um olhar a
reconhecer
Que estamos vivos, durante um lenço de papel e um
esquecimento
De bolso ou a necessidade maior, na espera de uma partida,
como
Se a própria espera não fosse já ter partido, quando os
passos
São tudo o que nos acompanham e o ranger é a certeza que
ainda somos
Um peso qualquer neste planeta de voltas e mais voltas,
sincronizadas
Pelo relógio adaptado às necessidades da solidão universal,
Daí isto não precisar de ritmo, os segundos esticam e
encolhem
De acordo com a velocidade dos dedos ou da ausência de gente
À volta deles, isto é o que acontece quando matam aquele que
nunca morre
E nem se quer ver, porque no fundo é só para que hajam mais
olhos
Na direcção do vazio, quando o vazio tudo o que empurra isto
Para onde a luz que tudo revela, isto, que é apenas o que
há, quando
Nada mais parece haver, a não ser segundos que passam por
nós,
E só o eco das células que morreram a deixar o vazio que
inquieta
A nossa sensibilidade de inútil testemunha do desperdício
próprio,
O que esperas, a estas horas é tudo o que se pode arranjar,
um poema.
26.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
Reminiscências Natalícias Em Toalha Azul
Que tal vai por aí o tempo, ainda há tempestades vindas de
África,
E morrões de areia e esperma na praia dos encontros súbitos
das noites anteriores,
E esse Natal, como se passou sem a toalha azul a limpar a
barriguinha que ao contrário
Do esperado pela entropia e a natural fome humana, encolheu,
não pela contínua
Digestão de futuros esquecidos em pequenas mortes, o meu
digo-te,
Já foi pior, com duas formas de cozinhar bacalhau em forma
de solidão vingada
No degelo ao pé do aeródromo quase escondido do Google map,
A vida tornou-se em algo muito estranho para quem não fez
mais nada
Dela a não ser vivê-la, as certezas agora muito menos que há
uns dez,
Cinco anos atrás, a areia parece que acelera e deixei quase
tudo o que faz mal,
Agora quase que sou um exemplo, num canto, onde ninguém quer
pecar,
Que boa pessoa se é quando a felicidade não se nota na noite
curta da existência
Dos outros, passar silenciosamente, uma raposa sem rabo a
enlouquecer
Entre uma rede e outra, devias lembrar-te de mim, ao menos
no Natal,
Afinal de contas estavas armada em Pai Natal e
perguntavas-me o que queria,
Eu como sempre, isso ainda não perdi, estava bem com o que
de ti me envolvia,
Nunca me queixei muito, em vez disso poesia, que incomoda só
aqueles
Que em vez de fazerem poesia da vida querem fazer vida da
poesia,
Deviam acreditar em quem raramente faz a barba e passa fome
por
Ou sem obrigação, apesar de a neve ter substituído a areia e
a possibilidade
Do contágio ter sido substituído pelo contágio confirmado dos
outros,
Isto continua a ser um poema sobre o Natal, os universos
sobem e descem neste
Mesmo, e deve haver um onde o tempo, tempo, tempo, o mesmo,
Com vinte e cinco graus ressacados na manhã de Natal, com os
tomates
Vazios, ou menos cheios, em direcção ao futuro, a este poema
longínquo.
Turku
25.12.2014
João Bosco da Silva
sábado, 20 de dezembro de 2014
Encher Chouriças
Enquanto o sangue pinga para o chão da garagem, já tenho as
tripas lavadas
Com a água fumegante do rio numa manhã de geada, é o que
isto é,
Um poema nos olhos dos outros, as palavras não perderam a
cor com os anos,
Continuam as mesmas a gozar com as têmporas nevadas pelos
desgostos,
Ou nem por isso, só a vida, os dias somados a fazer anos e
aqui se está,
A engolir segundos atrás de segundos sem gelo, porque chega
o frio que está
Fora a reflectir a distância glaciar do que dentro se
esgota, ambos sabemos
Que não há salvação, por isso continuamos, olhamos o rio num
dia de Verão
E somos nós, tentamos ignorar os sacos no fundo que foram
arrastados
Desde a ponte e agora só ossos de cães e gatos mal nascidos,
nós aquilo tudo,
Aqueles cadáveres inocentes e indesejados, frascos de
herbicida, pneus,
Uma pá enferrujada, peixes asfixiados pelas oscilações dos
vizinhos,
Gota a gota, o caudal engrossa à necessidade de pontes, de
abraços,
Ou apenas a vontade deles, porque a distância, sempre a
distância
E somos todos uma cambada de hipócritas, porque quando
perto,
Todos cheios de espécies e cerimónias, bichos brutos com
talheres de prata,
Às vezes é preciso parar na ponte romana para respirar um Kentucky,
Ou esperar pela noite para revelar a amizade sincera, é o
que nos salva
Do ruído, tanto ruído, cada vez mais ruído, nem se consegue
fazer barulho
Nos ouvidos dos outros, dos que merecem ouvir, dos que
precisam ouvir,
Mas não conseguem, tal é a saturação da diarreia bem
sustentada
Por nomeações de direitos entre eles, a estas horas devem
estar
A banhar a carne em vinho, tu conheces bem o meu hálito,
apesar
De lavar os dentes com a cinza dos anos e ela ser sempre
fiel ao irrepetível,
Ambos gostamos à nossa maneira dos grilos no Verão e dos urinóis
Em horas de aperto, apesar de o cheiro a ureia me fazer
lembrar
Grades de snappy e de tupperwares quentes envolvidos por
panos
Da cozinha, em postos da guarda-fiscal em mil novecentos e
noventa,
E da boleia do padeiro a quem dava um Fernando Pessoa por
pão
Quando a mãe me dizia que já era um menino grande,
E as geadas sempre foram tão grandes nas mãos pequeninas,
Mesmo com luvas que esticam, e sangue que pinga, uma última
gota,
Confunde-se com a cor do vinho, seja como for, agora é
cortar,
Curar, seja à força do sal, da distância ou do fumo da
memória,
Nós sabemos o segredo, só ainda não o conseguimos trazer à
consciência,
Traduzi-lo em palavras, mas estamos mais perto, hajam
pulmões
Para deixar anéis de sangue nos lábios dos brutos, as tripas
das chouriças
Estiveram em vida, cheias de merda, existe algo de delicioso
nisto tudo,
Tudo é, morte e vida, engolir e deixar passar, até cair,
como tudo em nós.
19.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Entrelaçamento Quântico Das Saudades
Enquanto aperto a cafeteira alguém diz, não queres fazer um
café, longe,
Depois do jantar, com o crepitar do lume, as brasas a
saltarem para o sofá
E as pantufas, quando a lareira ainda era aberta, ainda o é,
mas não aqui,
Neste caminho, a minha mãe aperta a cafeteira e eu tenho
saudades
Quando o cheiro do café começa a despertar-me o hipocampo do
processador
Quântico de tempo, a memória tudo, o que se consegue evocar
no momento
O que somos, ou seremos um reflexo distante e distorcido,
inverso ou paralelo,
De uma mão a segurar uma chávena, e a levá-la aos lábios,
despertando
Nos lábios distantes uma saudade de calor específico,
Defina-se inspiração, vontade, epifania com uma colher cheia
de incerteza
Numa chávena de café, sem pires para ajudar na viagem
independente
De todas a leis realistas, da saudade, não queres café, algo
move a vontade,
Nas faces do dodecaedro, a mesma, de forma diferente, a
infinita mesma,
Também a saudade não é prevista pela mecânica que faz subir
o café.
19.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
Férias De Natal Revisitadas
À espera estava a geada nas couves e nos ramos descarnados
do marmeleiro,
O cão escondido do nevoeiro dentro de um bidão, hoje o bidão
vazio,
Sem companhia no dia da festa à hora dos foguetes da tarde,
À espera a lareira, com a dança hipnótica das chamas, na
sala
A um canto o chão coberto de musgo e palha e figuras de
barro
Pintadas à pressa com o rigor devoto a um deus dependente do
tempo,
Ao lado os embrulhos do costume, cada vez mais
transparentes,
No quarto transferia-se a roupa do saco para o guarda-fatos,
Agora, abre-se a mala, tiram-se os livros para acompanhar
A lareira e deixa-se aberta, chegar começou a confundir-se
com partir,
Agora nem se chega a tempo de ouvir a música, soldada
Algures numa fábrica escura da China, das luzinhas de Natal,
Que se guardavam sempre para o próximo e nunca aguentavam
A sua inutilidade no resto do ano, à espera estavam os
serões
De roupão, os dias inteiros de pijama, o leite com chocolate
Quando se toleravam infantilidades mamíferas, à espera
Estava o ainda ter o futuro pela frente, o ainda não é para
já,
Ainda se acreditava no nunca mais e no potencial de uma
caixa vazia,
Escreviam-se poemas iluminados pelo crepúsculo incendiado
Na mesa da cozinha em folhas A4 roubadas da velha impressora,
Antes da mãe fazer o jantar e ainda havia aquela sensação
De ser algo especial, aquilo, aquela folha que era nada
Tornada poema, aquela emoção que era muda, um grito,
O cheiro das rabanadas salpicadas com canela e Enya do rádio
Que foi a prenda da irmã uns natais atrás, os caixotes do
lixo
Temendo a avalanche que lhes cairá no dia de Natal,
O avô que não se julgava ser o último e afinal, os lábios
roxos
Do vinho nunca mais se mostrarão contentes por estarmos
Todos juntos, nunca mais estaremos todos juntos, tudo se
rasga
Como um embrulho, para se revelar o amanhã, e a surpresa
Perde-se para sempre e é impossível voltar a embrulhar o
amanhã
E torná-lo no lugar onde tudo é possível, o gato deixa de
estar vivo e morto,
E se está morto nunca poderá estar vivo, nunca mais, na vida
ao menos
Sempre se têm duas hipóteses, mesmo que não hajam certezas,
Antes de se entrar, a lareira estará sempre acesa, o gato
estará a fazer de cão,
E o jantar não tardará, por isso tenho que acabar esta geada
nas couves
E nos ramos do marmeleiro, lá longe, onde me mora o Natal.
14.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Coprologia Poética
Ando há semanas para escrever este poema, misturei tanta uva
que nem sei,
Até enfiei umas amoras à mistura, era para ser algo sobre
fazer pão de madrugada
Numa aldeia francesa, ou a rua deserta da noite povoada por
cães vadios
De uma vila portuguesa onde restam poucos burros sob um luar
de vinho tinto,
Era para ser destilado, entretanto decidiu-se deixar
fermentar, pensou-se
Em usar um copo de whisky japonês, não whiskey, atenção que
aqui não há brutos,
Hibiki, envolvido com uma manta Maasai enquanto a neve lá
fora quase a crepitar
E dentro a companhia dos poetas irlandeses, mas não,
ficou-se pelo material
Fermentável e pelo vento que varre a infelicidade das
memórias e torna o passado
Num paraíso sem retorno possível, decidi beber antes de
começar a esmagar tudo
Sob os meus pés sensíveis de croprologista, esmagando cada
segundo com
A violência que me empurra os olhos contra o cérebro, é a
vida, e é,
O estômago já aguenta tanto que passo semanas sem vomitar, e
há cada vez mais
Santos, mais deuses, mais poetas e ainda mais críticos
apaixonados pelas pinceladas
Do próprio cu no papel higiénico demasiado fino, pena não
cheirarem os dedos,
Entretanto, fermenta, este poema não é o resultado, é o
processo, não é poema sequer,
Claro que não, é uma merda, e têm toda a razão, mas é
necessária e inevitável,
A diferença é que eu cheiro os dedos e lavo as mãos, o tempo
dá outra forma ao açúcar,
Mas não sem ajuda, e é isto, não se vê, mas está lá,
fermenta, a merda num poema.
11.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Equilíbrio
Aqui estou, naquele momento , antes de encontrar o
equilíbrio na bicicleta,
A um segundo iluminado, do vento e do movimento, a rolar
finalmente,
À volta deste planeta, sem rodinhas, sem a mão no selim a
amparar,
Pelo caminho de terra, os castanheiros como testemunhas, sem
deus,
Aqui estou eu, depois, com a revista de banda-desenhada no banco
De trás da carrinha do meu pai, enquanto o Sol se põe, no
rio
Da aldeia, a cuspir água após ter finalmente encontrando
O equilíbrio na água, naquele momento entre o balanço
harmonioso,
Quase como se tivesse encontrado um sentido sem palavras,
Flutuando no corpo líquido, o meu corpo, a revelação,
Aqui estou eu, na missa de Domingo, segurando a cruz em
direção
Ao altar, entre aquele momento em que havia Deus e deixou de
haver,
Encontrando mais uma vez um equilíbrio, sem palavras,
Aqui estou eu, no limiar da aparição, da angústia e da
solidão
Eterna até à falência multiorgânica que lava o mundo da
nossa
Presença quase inócua, entre a inocência e a revelação,
Aqui estou eu, quase três décadas e ainda mal me equilibro
Nisto, na vida, neste mundo onde tudo é permitido e possível,
Entre o impossível e o possível, sentindo os segundos
marcados
Pelas estrelas, haja ou não luar, entre o olhar e o ver,
condenado,
Abençoado, com os dedos a testemunhar outras vidas
E a deixar testemunho de um momento, entre o estar e o
deixar.
04.12.2014
Turku
João Bosco da Silva
domingo, 30 de novembro de 2014
catalizada pelos Dire
Straits,
Perder, é do que tudo depende, de perder, o cheiro a pólvora
nos dias de festa
No Verão e aquela cerveja tolerada da grade, aquele sabor
nunca mais encontrado,
Depois de milhares, tantas vezes umas atrás das outras, como
se desespero,
Aquele sabor registado no limite do universo, o seu reflexo
infinito e eterno,
Onde todos os sonhos esquecidos tomam a forma do fim dos
tempos e aguentam tudo
Com a leveza de uma bola de sabão, o primeiro livro de
banda-desenhada perdido
Sabe-se lá onde, também lá onde tudo, a ser brilho azul e
rosa na membrana infinita
De sabão, onde tudo se reflete ao mesmo tempo eternamente,
também o beijo
Atrás da carrinha do padeiro, depois das festas, já quando o
Verão arrefecia,
Onde o universo mais frio, onde quase toca o vizinho e mais
uma génesis
De cortinas, tudo por um emaranhado de filamentos, cordas em
circunvoluções,
Um universo pequenino dentro de um volume insignificante à
escala do futuro
Cada vez mais próximo, também aquela canção um universo
criado de cordas
E as suas vibrações, nos dedos de um deus menor,
envelhecendo ainda,
Tão longe de mim o que me trouxe a mim, o que me fez e me é,
sou apenas
A memória de todos os beijos, o aroma entranhado nos dedos,
os grãos de areia
Há muito lavados, os olhares e os pedidos de olhos, quero
que me olhes
Nos olhos enquanto te vens, e parecia que ali, naquelas
pupilas o limite do universo,
A membrana da bola de sabão, onde tudo o que se perdeu, onde
tudo e até este poema,
Longe do transpirar lento do nosso desejo, onde a nossa pele
também o sofá,
E as almofadas no chão e o latex que acabou e promessas de
futuros pequeninos
À beira dos beijos à beira rio, com o universo possível a
ser estrelas nos nossos olhos,
Tão longe de ti, tão longe de mim, tudo o que perdi, nunca
perdido, eterno,
A ser sempre, de infinitas formas, na membrana da bola de
sabão onde cabe o universo.
30.11.2014
Turku
João Bosco da Silva
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Deve ser pecado, de certeza que era, se o coração batia mais
rápido,
Se dentro crescia uma excitação que tomava conta dos
músculos
Em direção a, era pecado, mesmo que não fosse uma
transgressão
Digna de registo num livro agora apagado e sujo, que difícil
era
Ser feliz e livre no tempo em que deus e as velhas tinham
olhos
Em todos os lados, nos palheiros, nos poços dos lameiros, na
paredes
Das casas abandonadas, na tasca, nos quartos da casa da avó,
Nos pipis das primas e até nas próprias cuecas e mãos,
Que snifavam inquisidores, que cheiro é este, cheios de
saber,
Aquele pecado de
entrar num poço, quase nus, com um pedaço
De ganga à volta do intocado, rangando a cobertura de
merugens,
E penetrando com os pés descalços na lama viscosa do poço,
Ao mesmo tempo que o pedaço de ganga se levantava
E as vacas adiantavam caminho em direção ao povo,
A água fria, envolvia-nos com um prazer quase erótico,
Deve ser pecado, por isso sacudimos bem as merugens
Que ficaram agarradas à pele e limpamos bem os pés,
A pele fria, nada do inferno quente dos pecadores de que
falam,
Só um relaxamento quase pós-coito, as vacas em direção
Ao toque do sino da igreja, elas também olhos de deus
E das velhas, pecado ou não, soube melhor que a hóstia,
E a leveza, a caminho atrás das vacas, bem mais real
Que aquela que dura uns momentos e se vai ainda antes
De desaparecer o cheiro a incenso, depois da confissão,
Esquecida limpeza logo após o vislumbrar das cuecas
Da catequista sentada no muro do adro e um foda-se.
19.11.2014
Turku
João Bosco da Silva
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Cemitério Judeu
A mesa está suja, é branca, mas sinto-a quando lhe passo os
dedos,
Antes de escrever, um último pedido aos sentidos, sentir
algo recente,
A sujidade da mesa, branca, deve ser cerveja seca, ou açúcar
da chávena
De café, ou o resto de um sonho que salpicou para aqui,
estava no Brasil
Mas não havia sotaque e a cidade parecia do norte da Europa com
Um clima tropical, uma utopia, como sonhar África num
Inverno eterno
Uma distopia, não me interessam os sonhos que me querem
contar
Hoje, é a minha vez, sonhei tantas vezes com um cemitério a
transbordar
De lápides, a verter ossos das costuras, num estranho
crepúsculo
Entre o cinzento e o vermelho agónico de uma estrela
moribunda,
Lápides cheias de anjos e santos e esperança na
ressurreição,
Afinal, o homem que dava vida ao barro ali, noutro cemitério
bem real,
Judeu, em Praga, acordado, num cemitério vazio à espera de
almas vivas,
Únicas possíveis, atolado de corpos e lápides, um mar de
lembranças desesperadas,
Onde estará o golum, ou o barro que resta dele, a estas
horas,
Em que todos os sonhos se revisitam acordado e perdem a
doçura
Da impossibilidade, a segurança do sono, a mesa está suja,
Sinto-a com estes dedos despertos, estes dedos fora de
qualquer
Corpo, neste momento, olho-os e vejo-os, sinto-os, longe de
mim,
As unhas, sempre curtas, a acumular epitélio, secreções,
muco,
Sonhos despertos no toque, agora cemitérios, desses corpos,
Mesmo que as almas ainda neles, e este poema uma vala comum,
Como outros poemas têm sido, escavados com estes dedos,
Estes assassinos de sonhos, estes imortalizadores de
ilusões,
Estes espadas de anjos a expulsar de paraísos impossíveis,
A mesa é branca e está suja, não me lembro de ter lá escrito
nada.
Turku
14.11.2014
João Bosco da Silva
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Náusea Apetecível À Sombra Da Sinceridade
No fundo é tudo um canibalismo disfarçado, camuflado,
escondido com medo,
Se acabas por ser apanhado com os rins de alguém entre os
dentes, a vergonha
Suicida-te, porque não acreditas que os olhos que não
comeste por respeito
Aguentem tal petisco, é universal a sede humana pelo leite
alheio, hajam
Intolerâncias para revelar o que de melhor há dentro de cada
um, líquido
E rápido como uma narrativa ao ritmo da consciência, sem o catalisador
Químico que desculpa a liberdade comportamental, não, há
quantos anos
Acordas tranquilo por o sonho ter sido apenas um sonho, cortem
as amarras
Que te mantêm agarrado ao esperado e aceite e veremos onde
adormeces,
Existe tanta fome além da fome, tanta sede além da sede, o
sangue não chega,
Nunca haverão guerras suficientes, nem últimas violações,
temos tanta necessidade
De inferno que na dúvida de haver espaço no vazio da morte
para ele,
Criamos um bem melhor e possível onde a carne o pode sentir
plenamente,
No final, se a coisa correr mal para o indivíduo, há sempre
uma corda
Dentro dum guarda-fatos , uma boa vista empurrada pelo peso
dos nossos pecados,
O sabor metálico e uma pintura nova na parede até alguém nos
encontrar
E culpar o mundo doente, porque a culpa é do mundo estar
doente, não da doença
Que somos nós, canibais com trelas feitas de ideias, movido
a desejo e loucura.
13.11.2014
Turku
João Bosco da Silva
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Americana
Os tempos de incendiar peidos e escrever cartas de amor depois
de bater
Punhetas à pala de filmes encontrados em cima do guarda-fatos
dos pais
Dos amigos em alemão já lá vão, agora esperam filhos para
substituir
Sei lá quem, não, nem vai lá com poesia duvidosa,
desrespeitando
A, não me lembro, que raio, não interessa, perdeu o gás esta
merda toda,
É melhor deixar andar quem tem certificado para poder,
mortos
Todos, apodrecendo, porque caralho não arranjais um trabalho
decente,
Seja como for, não vou longe garoto, dizem os corvos e
outras aves
Sábias, nunca aprendi a tocar outro instrumento além disto e
o prepúcio,
Abraças-te envolvida em tatuagens que parcialmente fodi,
Lembras-te, depois de a esfregar na tua excitação, enfiei-ta
no cu,
Nem precisei de ter andado pelos montes em busca de restos
da minha alma,
E agora estás casada, tens filhos, morres como eu, mas preocupas-te
E não consegues aguentar isso de fingires todos os dias que
és feliz,
Cada vez pareces mais cansada, já não partes costelas nas
noites de geada
Só porque esperas mamar num elevador duvidoso, faltam aqui
figuras
De estilo, mas também, ninguém me toma por poeta, sou só um
cabrão
Que verteu esperma na areia de ilhas quase africanas em
tempos
De iluminação, agora toda a gente é feliz após muitas
fraldas e países,
Eu continuo a destilar álcool em versos, chegando a lado
nenhum,
Morrendo a cada poema, como se a alma fosse algo com
salvação possível.
Turku
11.11.2014
João Bosco da Silva
Após Cinzano E Evangelhos Segundo Anos 90
Os dedos depois cheiram a azedo e o copo de vinho tinto com
as luzes apagadas
Não se vê até se sentirem as meias molhadas se te descalçaste
antes de entrar,
Se não, é porque não entraste em casa de botas de elástico
ou no norte,
O resto é apenas fascínio ou tendência pelo relativamente
mórbido,
Já morreste, perguntar-te-ão, e o teu tamanho dependerá do
tamanho do silêncio,
Em vida, houve gente que teve o trabalho de me transcrever,
não foi mau,
A maioria morre sem que um pensamento seja transferido seja
da forma que for,
Mas há os génios que são inventados por necessidade ou pura
propaganda,
A Rússia está a acordar, outra vez e é Inverno, o Napoleão e
o amigo não-alemão
Ainda se lembram, só os pequeninos cheios de tomates
aguentaram a pastilha
Pesada da massa, no fundo todos procuram apenas uma rima, ou
uma cona,
Que não lhes lembre da mãe, precisam de encontrar uma vagina
mutagénica,
Bandeira branca, um dia, sentirás deus nas cuécas e o
cemitério será
Tão excitante quanto um caixote do lixo ou um saco de
estrume,
A tua própria morte será demasiado pesada com o peso do
infinitamente
Não tu, depois dos vinte e mais que sete e oito, mais uma
punheta será
Uma vitória barata, menos uma nota roxa também não será
assim tão mau
Se embalares o míssil em direcção à erudição transcendental
da foda
Sem idioma comum, percebes, não, não leias mais, santa pu
rificadora
Das tuas frustrações ao lado do autoclismo, engole então os
sofismas,
Admira as eulógias de quem sempre conheceu paralelos,
continua
A evitar o poder de quem caminhou no sangue e corpo do
golem,
Tu que por bruxa, sempre te quiseste freira ou uma merda
mórbida qualquer.
A estas horas não acordes, continua a fumar e a escrever
para a admiração
Dos hereges, convencidos do seu lugar ao lado de lado nenhum
na verdade.
11.11.2014
Turku
João Bosco da Silva
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
La Bohème
Não se faz de gasolina isto, faz-se de despedidas, de sonhos
abandonados
E escondidos sob o falso esquecimento, portanto, prolonga a
tua ausência
Até à eternidade, torna-te no combustível que engole todas
as ruas de todas
As cidades em todos os anos, à mesa de um hotel, ou de uma
cozinha com
As paredes escurecidas pelo fumo, onde se cura o fumeiro e
se ouvem galinhas
Quando a madrugada chega, todas as cidades e as suas ruas e
os seus anos,
Condensam-se no passos primeiros e regurgita-se uma noite
galega,
Para os lados do sétimo dia, quando todos os rios o mesmo,
dando voltas
Pelo mundo fora, todas as pedreiras a mesma ferida na terra,
Cavalgando um pastor alemão que entretanto morreu tantas
vezes,
Enquanto a dona, vestida de luto, mostrava os dentes de
ouro,
Numa gargalhada tão fresca como a água da nascente perto das
ameixeiras,
Portanto, se quiseres ter utilidade além da carne, já que a
minha saliva
Secou dos teus lábios e a minha língua se esqueceu do sabor
do teu batom,
Continua a regar a tua ausência com a disciplina de um
freira ou uma viúva,
Não me mostres mais os dentes, deixa fermentar o toque que
me deixaste,
Acende mais um cigarro como se uma vela pela minha alma,
como se a língua
Nunca mais, nem a promessa silenciosa de um olhar esfíngico
de pecado
Libertador na casa de banho, no dia de aniversário e do
nascimento do encanto
Por Almada, cordas fumadas apesar de nunca na cozinha ao
lado do galinheiro,
Porque o processo é o mesmo, tens que te fossilizar, tornar-te
realmente
Pré-histórico, reduzir as ruas às origens, às tribos
primeiras, as palavras como mãos
Marcadas nas paredes das cavernas, não são tão facilmente
lavadas pelo tempo
Como as pessoas que nos tocam, não se faz de gasolina isto,
mas queima,
Consome como se a tinta fosse de cinza, ouvi dizer que a de
carne e sangue
Tem mais óleo e parece ser a que resiste mais ao
esquecimento e ao tempo,
Quando o dia der em nós, seremos o que restou do pó das
estrelas.
06.11.2014
Praga
João Bosco da Silva
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
O Caminho Até Ti
Podias ser salvo se te conseguisses encontrar naquele
caminho em direcção aos soutos,
Onde leste em cima de um muro de granito um dos primeiros
poemas num livrinho vermelho,
E eras capaz de sonhar com as mãos limpas e capazes de
grandes coisas, as limitações
Eram espaço vazio para encher com experiência, imagens
palavras, converter a vontade,
Podias encontrar-te se ainda olhasses as montanhas no
horizonte carregadas de promessas
E misticismo e visses além de onde te encontras agora, sem
velas, num atol estéril
Contaminado pelo exposição progressiva ao tempo, mas não,
passas pelos silvados
E ignoras as amoras, mesmo ao fim do dia, não te dás ao
trabalho de trazer aquela tarde
No poço apanhando rãs, cansa-te apanhar as flores percursoras
da Páscoa para levar à mãe,
Já não te sentas na varanda a disfrutar do passar lento dos
dias, passam sem chegares a
Saber-lhes o sabor, na tua boca apenas um gosto amargo do que
ficou por fazer,
Não te fascina mais o vermelho dos olhos fechados contra o
Sol, uma necessidade apenas,
Poupas a pele à erva seca por conformismo com o
entorpecimento e para evitares a dor
Vives como um morto, já não deixas copos meios cheios no
cemitério, na noite da festa,
Não te queimam com cigarros no chão do mesmo caminho, depois
do banho de estrelas
E de outro corpo ao ritmo dos grilos e da rotação da
via-láctea, o muro agora tem cimento,
Podias ser salvo se ainda restasse em ti um pouco de alma,
mas foi-se como a infância,
Nem tiveste que a vender ou trocar por algo vão, o tempo é o
Diabo e o inferno a relação
Do nosso corpo com ele e tu nunca poderás ser salvo, mesmo
que agora já não uses relógio
De pulso, sabes que ainda és tu, que é teu o fantasma que
trazes dentro, cheio de memórias
De outra vida, porque nunca soubeste ver as horas em
relógios de ponteiros e sabes
Que além, no caminho por trás do souto, encostado ao muro,
havia um silvado do teu tamanho,
Onde te abrigaste de uma tempestade entre a tua mãe e a tua
avó e tiveste medo, hoje não há
Nada, só pedras descarnadas do muro, agora os teus passos
arrastam a única tempestade
E não tens refúgio no deserto que plantaste, a não ser que
te encontres naquele caminho
Em direcção aos soutos, sacudas o pó e tires a tinta com que te foram
pintando pelos anos fora,
A não ser que reaprendas a ver daquela forma que o tempo te
fez desaprender.
Turku
02.11.2014
João Bosco da Silva
domingo, 2 de novembro de 2014
Análise
O sujeito poético usa, neste caso concreto, uma vasto leque
de imagens que, aliadas às aliterações, tentam transcrever em verso, num ritmo
alucinado, o seu estado de espírito, ou desconforto mental, recorrendo ainda a
outras figuras de estilo, se bem que poucas e ordinárias, devendo-se isto à
crise da época e à condição sociocultural do próprio sujeito, como hipérboles em
contraste com alguns eufemismos, poupando assim nas antíteses, usando
simbologia da sua mitologia pessoal, especialmente da infância, disfarçada de
metáforas, é de destacar ainda o recurso a uma poupança na pontuação pelo uso
exclusivo de vírgulas de forma a impor um ritmo quase asfixiante, ilustrando
bem o estado mental no momento da criação poética, sacrifica então a clareza no
discurso, de modo a manter-se fiel à tradução da emoção em palavras, existe um
desprezo pelo leitor, e os temas abordados, pela sua extrema natureza confessional
e pitoresca, podem colocá-lo perante uma composição surrealista, este desprezo
é mais notado comparativamente à dedicação mostrada pela criação anti-poética,
está bem patente a consciência de que mais de setenta por cento do universo poderá
ser matéria escura, uma lobotomia seria uma alternativa para o impulso, quase
necessidade vital, que o sujeito tem em se tornar poético, não é para se
mostrar, nem para lhe beijarem o cu, se bem que um broche, será por ele, sempre
bem recebido, não é para lhe baixarem as calças em submissão contemplativa,
esperando portas abertas, sujeita-se à sujeição poética, simplesmente porque
come demasiada merda que a vida lhe atira aos sentidos e o estômago não aguenta
tudo, tal como o cérebro quando se dorme, digere, fermenta, destila, absorve e
excreta, o sujeito poético, para terminar, está claramente, munindo-se de um par de
paradoxos, a cagar-se.
Turku
01.11.2014
João Bosco da Silva
Michael Jackson
Tinhas uns quatro ou cinco anos,
Em frente à televisão,
Punha a mão na braguilha,
Apertava e gritava, AMBÉ,
Contudo, a minha mãe repreendia-me,
Não faças isso que é feio, é porco,
Também devia ser pecado,
Depois de ter enfiado uma boneca
Nas cuecas e de ter apanhado,
És um porco,
Comecei a perceber que
O inferno devia ser por aquela zona,
AMBÉ e agora o Ambé está morto,
Sempre que o ouço lembro-me
Da inocência e das horas em transe
A apanhar anéis dourados
E cair em picos, buracos sem fundo,
Correndo dentro de água
Antes da contagem chegar
A zero na última vida,
O Ambé também lá apesar
De só nomes japoneses,
Agora só visito a IceCap Zone
Por nostalgia, mas continuo a não ver
Como o Ambé era pecado e
Amén não, mistério da fé,
Que se perdeu com o encolher da roupa.
Turku
31.10.2014
João Bosco da Silva
Amadurecimento Branco
Miúda, salva-me do tempo,
Digo-lhe sem mover os lábios,
A colheita de cabelos brancos
Tem-me surpreendido e
Parece que cada vez mais
Me torno transparente,
Enquanto o silêncio me
Rodeia, cada vez mais se
Torna difícil ouvir-me dentro,
Achas-me demasiado velho,
Pergunto à minha fotografia,
Nesse tempo ainda julgávamos
Ser capazes de tudo,
O que tens a perder agora,
Respondo-me, na verdade
Não sei, mas a vida tornou-se
Demasiado fina e dez anos
Agora são uma vida,
Miúda, tu que me lês,
Agora que me tornei num
Animal dócil e escravo
Da memória, traz-me
De volta, podes não saber,
Mas além do pós acumulado,
Se tiveres vontade de me
Soprares os olhos, verás,
Que ainda arde por dentro
A fome que alimenta sonhos,
Nem peço a tua língua
Despertando a minha alma
No meu escroto, mas toca-te
Quando o eco do que fui
Te entrar dentro, até
Julgares que são os teus
Pensamentos a nascer, acorda-me
Deste pesadelo de acumular anos.
Turku
30.10.2014
João Bosco da Silva
Subscrever:
Mensagens (Atom)