segunda-feira, 18 de novembro de 2024

 

O Toque das Tuas Mãos Limpas

 

O toque das tuas mãos limpas,

Intocadas pela vontade devastadora,

Nelas a curiosidade inocente,

O brilho ainda da eternidade de onde

Despertaste e te arrancaram,

Esses dedos tão dedos já,

Na forma, no prender desajeitado e seguro,

Sem certezas nem incertezas,

Mãos abertas para um mundo

Que até aqui criamos para tudo,

Menos para o futuro,

Que estas mãos não se fechem

Em sofrimento, não causem dor,

Se elevem apenas para gestos

De saudade, que o mundo lhes seja

Leve, menos breve, que a pureza

Se lhes mantenha, mesmo quando

Marcadas pelo arrastar do tempo,

Sujas pelo pó e a lama que da vida

Se desprende, estas mãos que me

Agarram o polegar, conspurcado

Por insignificantes desejos

E iras sempre desnecessárias,

Me tornam por um instante limpo e inteiro.

 

Turku

 

18/11/2024

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

 


Fermentações

 

Trincar as romãs abertas

tocadas pelo orvalho –

manhã de Outubro.

 

Antes do longo sono

as folhas aproveitam

o último Sol.

 

Terão também emigrado

as rãs do poço? –

verde silêncio.

 

São agora os únicos

moradores do poço –

peixes cor-de-laranja.

 

Quem terá à noite

deixado diamantes

sobre as couves?

 

Florescem agora

as flores de alecrim –

folhas caídas.

 

Sobre o verde musgo

brilha o sol –

manhã de Primavera?

 

Pedra sobre pedra

sonho sobre sonho –

a universal queda.

 

Como flores abertas

as romãs

ao sol orvalhado.

 

Ignorando a roupa estendida

a borboleta

chega ao alecrim.

 

Vinda das pequenas mãos

a primeira oferta

é uma flor de alecrim.

 

Onde foram as montanhas

que vi

ao amanhecer?

 

As montanhas que vi

ao amanhecer

onde agora?

 

A mimosa secou

chegou à rocha

ou à hora.

 

As uvas esperaram

a chegada de longe

agora secam na videira.

 

Na pipa de castanho

o vinho novo

aos poucos adormece.

 

No pipo de castanho

o vinho novo –

não tardam as castanhas.

 

No dedo queimado

pulsa a lembrança

do pequeno descuido.

 

Ao lado da vinha nova

a minha nova vida

e eu.

 

Para uma próxima volta

seca ao sol

a dorna.

 

Canta o galo –

há horas

as carícias da bebé.

 

Pequenino toque na couve –

gotas de orvalho

como estrelas dançarinas.

 

Lenha queimada

no ar da vila –

anoitecer de Outono.

 

Acordam as lareiras

da vila –

manhã de Outono.

 

Ainda à sombra

da videira

uvas e moscas.

 

Não cheguei a tempo

das amoras –

vinho na barrica.

 

Túmulo de pedra

quebrado

pelo arcaico progresso.

 

Como a juventude

é agora o mosto

apenas uma memória.

 

Cães à solta

nas ruas da vila –

liberdade ou abandono.

 

Lava-se a pipa

à sombra

do fantasma do negrilho.

 

Onde ficou a juventude

da vizinha

que vem das compras?

 

Na mão da bebé

o trevo

tem outra sorte.

 

No colo da avó

prova o mundo

a bebé jardineira.

 

No monte

vestígios da infância

cobertos de musgo.

 

Enquanto componho um haiku

o velho carteiro

lavra um olival.

 

À beira deste lago temporário

o silencioso eco

de quem me acompanhou.

 

Quanto muito

seremos ecos

uma pegada ilegível.

 

Na companhia das moscas

e do silêncio

despeço-me deste Sol.

 

Em cima desta fraga

volto a ser

inteiro.

 

Antes do longo inverno

uma última visita

da primavera.

 

São estas as ondas

que procuro

nos estrangeiros mares?

 

Torre de Dona Chama

 

Uma a uma

acordam as chaminés

da aldeia.

 

No monte

retalho dourado –

manhã de Outono.

 

Ao meu colo

dorme a bebé –

alguém corta lenha.

 

Folhas caem

cabelos empalidecem

dorme e cresce a bebé.

 

Lenha cortada

bebé acordada –

Sol de meio-dia.

 

Sobre o livro do mestre

a chupeta

aguarda o despertar.

 

A carrinha do pão

chegou –

aldeia reunida.

 

À sombra da figueira

o avô

colhe cogumelos.

 

Pergunta-me o nome

dos dióspiros

ainda verdes.

 

Antes que o orvalho

evapore

lavo os olhos.

 

Dorme ainda a aldeia

ou manhã quente –

chaminés sem fumo.

 

Preferes o ruim?

“Não! Gosto de dar

O melhor aos outros.”

 

Nas couves orvalhadas

o Sol da manhã –

memórias e nostalgia.

 

“Ao descer deste caminho

sente-se a brisa

como no mar.”

 

“Valha-me deus”

grita a beata –

será penico entornado?

 

Contra o vidro da janela

a vespa asiática

dá uma cabeçada.

 

Folhas amarelas

e roupa estendida –

Sol de Outono.

 

Numa ilusão de infinito

fundem-se três cores –

anoitecer de outono.

 

Rodeado de crucifixos

hoje neste quarto

durmo sozinho.

 

Cidões

 

Dissipa-se aos poucos

a neblina –

dia de meditação.

 

Em breve secarão

estas malaguetas

à lareira.

 

Como um marmelo maduro

a bebé ao colo –

tarde de Outono.

 

No tanque da roupa

o cheiro a sabão

lava-me os cabelos brancos.

 

Torre de Dona Chama

 

Outubro 2024

 

João Bosco da Silva

 

Mudar o Filtro

 

Muitas vezes, são as coisas pequenas,

Os gestos mais simples, que também nos salvam,

Num mundo em que quando algo falha é abatido,

Ao mais pequeno defeito é descartado,

Ao mais pequeno defeito é rejeitado,

Ao mais pequeno sinal de cansaço logo é substituído,

Num mundo de uso único, mudar o filtro e a borracha

À cafeteira Bialetti, que logo após o pequeno esforço,

Apesar do aspecto cansado, mas experiente,

Começa a tirar o café perfeitamente,

Um pequeno gesto, que traz à memória

As voltas dos pais às lojinhas da vila, à procura

De uma borracha para a sua velha cafeteira,

Numa altura em que era tudo tão difícil de encontrar,

Num mundo em que se levavam os objectos

Até ao fim e não se desistia, à procura

Das linhas da moda, do próximo cheirinho rápido

De dopamina sem o mínimo esforço de rotação.

 

Torre de Dona Chama

 

08/10/2024

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 29 de outubro de 2024




Regresso a Simi 



Entre mar e montanha

cúpula celeste

gloriosa tumba de ovelha.

 

É à sombra da torre do relógio

que se passam

as horas mais lentas.

 

O papá papou

o polvo

papou o papá.

 

Atrás dum barco de pesca

um homem sem calças –

amor ou merda?

 

Ao fim da tarde

eleva-se uma folha seca

ou uma borboleta?

 

Quem dormirá

naquele barco

também arruinado?

 

Quem terá tido a coragem

de limpar o cu

entre tanto cardo?

 

Nos dentes

da beleza

defecar.

 

Sobre o corpo submergido

timidamente

cai a chuva.

 

Não faltam templos

onde o verde

agora uma memória.

 

Montes acima

como nos desenhos

das crianças.

 

Lentos os dias

como os barcos

que chegam.

 

Ao ritmo dos barcos

passa o tempo

na ilha.

 

Perder a preocupação

de encontrar a linha

entre a terra e o céu.

 

A sombra da torre do relógio

jaz agora vazia –

folhas caídas.

 

Pequeno barco

quando tocaste

a última esponja?

 

Um afogamento

em pastel

e safira.

 

A lentidão seca

dos dias quentes

já uma memória.

 

A frescura do mar

agora sal

na pele quente.

 

No estômago o café

o sal do mar

e agora uma cerveja.

 

A amargura refrescante

dos últimos dias

na ilha.

 

Antes da Mamos aquecer

secar

noutra sombra.

 

 

Simi, Julho 2024

 

João Bosco da Silva

 

Rapidamente as crianças

levam o verão embora

em grandes mochilas.

 

Até adormecerem

balançam as folhas –

fim de Agosto.

 

Já sabe como dói

o cansaço –

orvalho nos olhos.

 

Seguindo o rasto da caneta

a bebé

pára de chorar.

 

Nos olhos da bebé

a dor do sono –

vento na rua.

 

Chegou o sono

no rosto da bebé

orvalho sagrado.

 

Agosto 2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 22 de outubro de 2024

 

Alva e Komorebi

 

Subitamente

te tornas

em dor e eternidade.

 

Orvalho em folhas

de salgueiro –

a morte dos poetas.

 

Também morre

quem escreve

haikus.

 

À distância do prato

e do copo

o mar e a infância.

 

Ouço um pica-pau

a neve escorre

enfim chegaste.

 

Como o que parte

Alva chega

com a Primavera.

 

Só na ilusão

se tem espaço

para a eternidade.

 

Hepáticas emergem

do húmus –

afinal Primavera.

 

Revela-se finalmente

o húmus –

outono novamente?

 

Estrangeiras como eu

reconheço no seu canto

o meu berço.

 

Saí para escrever

ao sol –

logo escureceu.

 

Ainda onde ficou

a pinha

que não vi cair.

 

De mão dada

crescem juntos

a idade e a solidão.

 

Quantas mais linhas

na cara

menos os sorrisos.

 

Ao sol espero

números redondos –

antes virá o verão.

 

Neste mundo barulhento

serei eu invisível

se me mantiver em silêncio?

 

Que mãos terão

transplantado

as flores deste jardim?

 

Debaixo de uma árvore nua

espero ao sol

a sua sombra.

 

O último sorriso

que te vi –

unha postiça no chão.

 

Olhando as cerejas

não sei se durmo –

longa foi a noite.

 

Não te apresses

vai devagar

ò primavera.

 

Como estrelas

num céu verde

os dentes-de-leão.

 

Não fosse ao lado

a artéria da cidade

e seria rei do silêncio.

 

Até estas estrangeiras

fragas de granito

conhecem os meus pés.

 

Mais abaixo

o bloco arrancado à fraga

parou.

 

Sob os pés

as agulhas do pinheiro –

aromas primordiais.

 

Tanto acaricia a fraga

como o pinheiro –

morna brisa primaveril.

 

O cheiro do pôr-do-sol

no fresco musgo –

dourado momento.

 

Contra o meu peito

um outro mundo

que começa.

 

Contra o meu peito dorme

um outro mundo

que começa.

 

Ambos inocentes

como a pinha que cai –

sesta entre pinheiros.

 

Sou eu mais

que a flor torcida

com o peso da abelha?

 

Visita-nos um esquilo

comungamos os três

do sol e do silêncio.

 

Como a verdade pura

dança sem palavras

a luz através dos pinheiros.

 

Turku, Abril-Maio 2024

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

 


Primeira Visita a Museu*

 

“para quê festas e grinaldas e canções e vinho

se os corpos envelhecem como as coisas”

Ruy Belo

 

Vês estas pedras brancas, meu amor,

Estes contornos humanos, uma quase carne

Fria e estática, as mãos que a esculpiram,

Há mais de dois mil anos que não são mãos,

O mundo era outro, a vida a mesma coisa,

Muitas vidas surgiram e passaram,

Que pedras tocará o teu corpo pequeno,

Que formas lhes darás, o que ficará de ti nelas,

Como nestas pedras, pelas quais tantas vidas

Passaram, enquanto estes corpos,

A mesma pele suave, um membro ou mais

A menos, a palidez que tomou conta da memória

E os teus olhos enormes olhando o seu silêncio,

Como se percebesses o mistério criador,

A ironia da vida que cria para a eternidade

E que não passa de um momento reflectido

Na forma de umas pedras tocadas pela paixão

De uma carne não muito diferente da tua.

 

* Ouvir “Padre Ramirez” de Ennio Morricone ao ler (https://www.youtube.com/watch?v=7Q9maBPLp9c&ab_channel=CinemaHotelStudios)

 

 

Rodes

 

14/09/2024

 

João Bosco da Silva

 


Sonhos em Petricor

 

Nos sombrios retalhos dos sonhos,

Antes de umas tímidas gotas de chuva,

Logo se ergue uma vontade de pedra,

Os sonhos ficam vertidos na primeira luz

E as nuvens, sobre uma inquietação crónica,

Aguentam a pressão dos dias lentos,

Respira-se melhor com a carne entre os dentes,

Um aperto de desenrolar o coração

Num muscular esplendor, odiar nada

Mais que o tempo, que tudo traz

E tudo leva e atrás apenas, um eco

Em reflexo, nos limites de onde tudo é

E acaba, dos sonhos resta apenas o breve

Petricor, como uma promessa embriagada.

 

Simi

 

11/09/2024

 

João Bosco da Silva

domingo, 22 de setembro de 2024

 


Regresso a Simi 2

 

Passando pouco mais de um ano,

O que resta do corpo da ovelha

À sombra do túmulo, é uma coluna

Branqueada pelo sol e a maresia,

O círculo de pedras bem encaixadas,

Continua o mesmo aos olhos pouco

Nítidos, uma ilusão de eternidade,

O reflexo destas pedras na frágil

Câmara escura de osso e sonho,

Mais abaixo ao sol, tropecei também

No seu crânio, quase num sobressalto,

Como quem num quarto escuro

Dá por si num espelho.

 

Simi

 

07/09/2024

 

João Bosco da Silva

sábado, 21 de setembro de 2024

 




Regresso a Simi

 

No alto do monte, uma fileira de moinhos

Cariados pelo desuso e o esquecimento,

Quase no topo a suposta tumba de um rei,

Ambos olhamos desta janela a bandeira

Dum pequeno barco de pesca

Enquanto ouvimos Luis Bacalov

Que dá ao ar a textura do fim de verão,

Há um ano escrevia um poema

Sobre a tumba desse rei e uma ovelha

Que jazia morta à sua sombra,

Hoje nos teus olhos vejo o movimento

Da pequena bandeira, de todas as bandeiras,

A passagem pelos astros, a nossa imensa

Insignificância capaz de ecoar numa amostra

De eternidade, nos teus olhos tudo

O que passou e passará, num silêncio

Puro, sem fronteiras ou língua.

 

Simi

 

05/09/2024

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

 

Soprar o Pó de Cartuchos

 

“to be free

Is often to be lonely”

W.H. Auden

 

Posso ter herdado os vícios, mas não me tirem os pecados,

O aconchego na decadência, companheiros no silêncio

Dos últimos dias, um soprar gentil no pó das amoras,

Antes das primeiras tempestades, torna-se tão difícil encontrar

Ecos daqueles dias quentes, a luz cabia toda na fome

E os dentes acariciavam tudo com um entusiasmo

Adolescente, tornámo-nos sombras, mundos inteiros

Encerrados no silêncio e na invisibilidade dos anos,

Quando o vazio de uma casa se enche de solidão, abraça-se

Essa luz distante, que ainda viaja a caminho do nosso

Absoluto esquecimento.

 

Turku

 

27/08/2024

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

 


Tudo

 

Perder, ao teu lado, o desalinho involuntário

Dos dias, aprender novas preces, primordiais,

Fundamentais como o balanço dos pulmões

Vida fora, tudo pende num sorriso ou na dança

De uma folha inocente do Outono que se aproxima,

Crescerá o silêncio, um dia, absoluto, é certo,

Mas agora tudo balança num equilíbrio delicado,

Frágil como a luz da manhã no sono da pele quase desperta.

 

Turku

07/08/2024

João Bosco da Silva

sábado, 3 de agosto de 2024

 


A partida das formigas-de-asa — Haikus Bálticos

 

Zumbe uma mosca

o meu sangue em ti

a serenidade da água.

 

Algo mergulha

não tem medo

das cianobactérias.

 

Nas pedras rojas

a água desaparece —

a bétula crepita.

 

No cais de madeira

formigas-de-asa —

emigrantes no fim de Agosto.

 

Sobre o verde ondulante

dorme a bebé —

leve brisa de Julho.

 

À beira Báltico

o silêncio de antigos aromas

— velho fumeiro de peixe.

 

No sono da bebé

tento encontrar

o meu silêncio.

 

Mais uma fotografia

um registo

para o esquecimento.

 

Enganar o tempo

com palavras —

nem as pedras conseguem.

 

O Sol o mar

um pedaço de papel

um momento todo meu.

 

À beira do mar

respira-se mais fundo

com uma caneta na mão.

 

Sobre a pedra

no meio da relva

caganita de coelho.

 

Chuva no telhado

a luta

das formigas-de-asa.

 

Nas folhas da bétula

seus olhos encontram

uma canção de embalar.

 

Inúmeras formigas-aladas

frenesim no telhado —

agora silêncio e vazio.

 

Flutuando na água da chuva

só o vento move agora

as formigas-de-asa.

 

No bruxuleante lusco-fusco

da sauna de madeira

lavo-me com água da chuva.

 

Escovando o cabelo

deixando de ser

a cada passagem.

 

Ouvindo shakuhachi

na sauna lavo-me

com a pressa de um negrilho.

 

Como uma bandeira

das minhas derrotas

cabelo ao vento.

 

Com esta lenha e esta água

absolvo também

os meus pecados.

 

Sobre esta rocha

repetindo-me

célula a célula.

 

Porque ver só formigas

quando por todo lado

flores.

 

A quem minto

quando me deixo abocanhar

por tanta vontade.

 

Sobre uma fraga longínqua

passa por mim

o mesmo vento.

 

Na sombra

não forces

o poema.

 

Último dia na cabana

rego os trevos

com a glória-da-manhã.

 

Eskilsö-Kaskinen, Julho 2023