segunda-feira, 23 de setembro de 2024

 


Primeira Visita a Museu*

 

“para quê festas e grinaldas e canções e vinho

se os corpos envelhecem como as coisas”

Ruy Belo

 

Vês estas pedras brancas, meu amor,

Estes contornos humanos, uma quase carne

Fria e estática, as mãos que a esculpiram,

Há mais de dois mil anos que não são mãos,

O mundo era outro, a vida a mesma coisa,

Muitas vidas surgiram e passaram,

Que pedras tocará o teu corpo pequeno,

Que formas lhes darás, o que ficará de ti nelas,

Como nestas pedras, pelas quais tantas vidas

Passaram, enquanto estes corpos,

A mesma pele suave, um membro ou mais

A menos, a palidez que tomou conta da memória

E os teus olhos enormes olhando o seu silêncio,

Como se percebesses o mistério criador,

A ironia da vida que cria para a eternidade

E que não passa de um momento reflectido

Na forma de umas pedras tocadas pela paixão

De uma carne não muito diferente da tua.

 

* Ouvir “Padre Ramirez” de Ennio Morricone ao ler (https://www.youtube.com/watch?v=7Q9maBPLp9c&ab_channel=CinemaHotelStudios)

 

 

Rodes

 

14/09/2024

 

João Bosco da Silva

 


Sonhos em Petricor

 

Nos sombrios retalhos dos sonhos,

Antes de umas tímidas gotas de chuva,

Logo se ergue uma vontade de pedra,

Os sonhos ficam vertidos na primeira luz

E as nuvens, sobre uma inquietação crónica,

Aguentam a pressão dos dias lentos,

Respira-se melhor com a carne entre os dentes,

Um aperto de desenrolar o coração

Num muscular esplendor, odiar nada

Mais que o tempo, que tudo traz

E tudo leva e atrás apenas, um eco

Em reflexo, nos limites de onde tudo é

E acaba, dos sonhos resta apenas o breve

Petricor, como uma promessa embriagada.

 

Simi

 

11/09/2024

 

João Bosco da Silva

domingo, 22 de setembro de 2024

 


Regresso a Simi 2

 

Passando pouco mais de um ano,

O que resta do corpo da ovelha

À sombra do túmulo, é uma coluna

Branqueada pelo sol e a maresia,

O círculo de pedras bem encaixadas,

Continua o mesmo aos olhos pouco

Nítidos, uma ilusão de eternidade,

O reflexo destas pedras na frágil

Câmara escura de osso e sonho,

Mais abaixo ao sol, tropecei também

No seu crânio, quase num sobressalto,

Como quem num quarto escuro

Dá por si num espelho.

 

Simi

 

07/09/2024

 

João Bosco da Silva

sábado, 21 de setembro de 2024

 




Regresso a Simi

 

No alto do monte, uma fileira de moinhos

Cariados pelo desuso e o esquecimento,

Quase no topo a suposta tumba de um rei,

Ambos olhamos desta janela a bandeira

Dum pequeno barco de pesca

Enquanto ouvimos Luis Bacalov

Que dá ao ar a textura do fim de verão,

Há um ano escrevia um poema

Sobre a tumba desse rei e uma ovelha

Que jazia morta à sua sombra,

Hoje nos teus olhos vejo o movimento

Da pequena bandeira, de todas as bandeiras,

A passagem pelos astros, a nossa imensa

Insignificância capaz de ecoar numa amostra

De eternidade, nos teus olhos tudo

O que passou e passará, num silêncio

Puro, sem fronteiras ou língua.

 

Simi

 

05/09/2024

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

 

Soprar o Pó de Cartuchos

 

“to be free

Is often to be lonely”

W.H. Auden

 

Posso ter herdado os vícios, mas não me tirem os pecados,

O aconchego na decadência, companheiros no silêncio

Dos últimos dias, um soprar gentil no pó das amoras,

Antes das primeiras tempestades, torna-se tão difícil encontrar

Ecos daqueles dias quentes, a luz cabia toda na fome

E os dentes acariciavam tudo com um entusiasmo

Adolescente, tornámo-nos sombras, mundos inteiros

Encerrados no silêncio e na invisibilidade dos anos,

Quando o vazio de uma casa se enche de solidão, abraça-se

Essa luz distante, que ainda viaja a caminho do nosso

Absoluto esquecimento.

 

Turku

 

27/08/2024

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

 


Tudo

 

Perder, ao teu lado, o desalinho involuntário

Dos dias, aprender novas preces, primordiais,

Fundamentais como o balanço dos pulmões

Vida fora, tudo pende num sorriso ou na dança

De uma folha inocente do Outono que se aproxima,

Crescerá o silêncio, um dia, absoluto, é certo,

Mas agora tudo balança num equilíbrio delicado,

Frágil como a luz da manhã no sono da pele quase desperta.

 

Turku

07/08/2024

João Bosco da Silva

sábado, 3 de agosto de 2024

 


A partida das formigas-de-asa — Haikus Bálticos

 

Zumbe uma mosca

o meu sangue em ti

a serenidade da água.

 

Algo mergulha

não tem medo

das cianobactérias.

 

Nas pedras rojas

a água desaparece —

a bétula crepita.

 

No cais de madeira

formigas-de-asa —

emigrantes no fim de Agosto.

 

Sobre o verde ondulante

dorme a bebé —

leve brisa de Julho.

 

À beira Báltico

o silêncio de antigos aromas

— velho fumeiro de peixe.

 

No sono da bebé

tento encontrar

o meu silêncio.

 

Mais uma fotografia

um registo

para o esquecimento.

 

Enganar o tempo

com palavras —

nem as pedras conseguem.

 

O Sol o mar

um pedaço de papel

um momento todo meu.

 

À beira do mar

respira-se mais fundo

com uma caneta na mão.

 

Sobre a pedra

no meio da relva

caganita de coelho.

 

Chuva no telhado

a luta

das formigas-de-asa.

 

Nas folhas da bétula

seus olhos encontram

uma canção de embalar.

 

Inúmeras formigas-aladas

frenesim no telhado —

agora silêncio e vazio.

 

Flutuando na água da chuva

só o vento move agora

as formigas-de-asa.

 

No bruxuleante lusco-fusco

da sauna de madeira

lavo-me com água da chuva.

 

Escovando o cabelo

deixando de ser

a cada passagem.

 

Ouvindo shakuhachi

na sauna lavo-me

com a pressa de um negrilho.

 

Como uma bandeira

das minhas derrotas

cabelo ao vento.

 

Com esta lenha e esta água

absolvo também

os meus pecados.

 

Sobre esta rocha

repetindo-me

célula a célula.

 

Porque ver só formigas

quando por todo lado

flores.

 

A quem minto

quando me deixo abocanhar

por tanta vontade.

 

Sobre uma fraga longínqua

passa por mim

o mesmo vento.

 

Na sombra

não forces

o poema.

 

Último dia na cabana

rego os trevos

com a glória-da-manhã.

 

Eskilsö-Kaskinen, Julho 2023

domingo, 21 de julho de 2024

 

Servidões

 

E sem querer lá se torna académica,

Essa dor, que se troca por silêncio e ilusão,

Levados pela mão a apagões em retretes públicas,

Olhos que se nos fecham numa oração

De boca cheia, carne, quente, até ver,

Até quando, e a pressa que não chega,

Mil e uma iluminações congestionando

O suspiro, deixando na prece um gosto inacabado,

O alívio do mergulho no esgoto, tudo por nada,

Vencer o medo adiando-o num acréscimo.

 

Turku

 

21/07/2024

 

João Bosco da Silva

domingo, 14 de julho de 2024

 

Fazer a Janta

 

O pão endurece, as manhãs perdem-se uma a uma

E sobre a mesa, alho e cebola, esperando o azeite quente,

Um pôr-do-sol que valha a pena, um reflexo estrangeiro

Num mar familiar e mitológico,

Quantas vezes há menos poesia na poesia

Que num gesto quotidiano executado com graça,

Viver, esse ensino constante da perdição, abrir mão,

Teme-se mais o esquecimento que ficar sem resposta,

Por isso se erguem monumentos à incerteza

Para que perdure na eternidade,

Deixa-se cozer o ragu, mexe-se um pouco a massa

E espera-se, uma nuvem permite um pouco de sol,

Toca a campainha, é tudo.

 

Turku

 

14/07/2024

 

João Bosco da Silva

domingo, 7 de julho de 2024

 




Komorebi

 

Aspiras à ascensão do silêncio bruto,

Abrupta a certeza do impalpável momento,

Mais lento que um suspiro no desmoronamento

Da partida, o toque último das pupilas

No deslocamento dos astros, todas as ilusões

O vento que move as distâncias imperceptíveis,

Derrotas-te a cada desejo,

Mas nem o impacto violento de um definitivo olhar

Consegue tolher irremediavelmente

Uma eternidade humana.

 

06/07/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 1 de julho de 2024


 

Nos floridos silvados as amoras que não comerei — Haikus

 

 

Borboletas e abelhas

à volta da lavanda

dançando.

 

Armo-me de papel

e pena ­­—

morreu a poeta.[1]

 

Sente-se também

no pé do gigante

a mordida da formiga.

 

Cores e aromas

oscilando

na brisa de Junho.

 

À Lua encoberta

canta o sapo —

terra molhada ao amanhecer.

 

Sobre o centenário dragão

levemente pousa

a borboleta.

 

Em Junho

de calções

à lareira.

 

Pudesse eu descrever

o aroma do correr

desta agueira.

 

Espelhada na água

da agueira

hortelã fresca.

 

Tarde se lembrou o velho

de virar a água

para as cebolas.

 

De flor em flor

as abelhas na lavanda —

incansável beleza.

 

Duas lavandas floridas

invisível entre elas

uma roseira.

 

À sombra da videira

a rã canta

mais verde.

 

Inquietos os quilhões-de-galo

anunciam

a tempestade de verão.

 

Fugindo do Sol

para o buraco no muro

corre o caracol.

 

Contra o muro

da mesma encruzilhada

em três mulheres me verti.

 

Hora de almoço no Bairro

não se houve um talher —

cai uma telha da casa abandonada.

 

Atento ao canto das rolas

um cavalo solitário

entre ruínas.

 

Lá vai saber do almoço

o velho amigo

de meu pai.

 

Não tardam em saltar

do casulo felpudo

as sementes de giesta.

 

Rodeada de verde musgo

a sola de uma velha bota —

que resta do dono?

 

Nesta terra para quem

amadurecem os figos

senão para os melros?

 

Sobre esta fraga

aqui e agora sentindo

este vento que passa.

 

Nos floridos silvados

as amoras

que não comerei.

 

Conhecerá o rio

estes pés gelados —

Noite de S. João.

 

Nesta aldeia

é a enxada

o cajado do ancião.

 

Chega o verão

o rio vai grande

amanhã parto.

 

Hortências e andorinhas

a companhia

à hora do café.

 

Aquele esperado perfume

de figueiras ao sol —

finalmente verão.

 

Directamente da cerejeira

a barriga enche-se

de doçura e nostalgia.

 

Sobre o toro de madeira

repousam agora secas

as rosas de minha mãe.

 

Como um tracejado

a lagartixa

atravessa o caminho.

 

Gosto de sair de ti

e ver-te

o cu a pingar.

 

Torre de Dona Chama-Cidões, Junho 2024



[1] No dia da morte de Maria Quintans

segunda-feira, 3 de junho de 2024

 

Continuar o Acabado

 

“mãe há só uma:

que pela mesma vulva expulsa

mijo, mênstruo e filho”

Herberto Helder

 

e o caralho latejante do amante, num engasgo de corpo inteiro,

Abraçado por um visco espasmódico, coincidente com o último

Mergulho gorgolejante, num dourado ofegar de cio e vício,

Relegando a confissão ao silêncio ou à dura evidência,

Ser menos do que a vontade, dita e conta, palma a palma,

O orvalho palmejado, quente, de uma pele que logo

Se transforma num brilho repelente de vísceras,

Num despejo de dias trancados sobre si mesmos.

 

Turku

 

01/06/2024

 

João Bosco da Silva

sábado, 1 de junho de 2024

 

Na Nossa Natureza 2

 

Alimentamo-nos de ilusão, dedos invisíveis de vontade

Que apontam e pedem, suportamos por vezes,

Pequenas doses de ternura, dão para ir andando,

Mas os dentes revelam melhor aquilo que realmente

Precisamos de rasgar, como nos aconchega o cheiro do fumo,

O colo da escuridão, a mão do silêncio que nos empurra

Para dentro e lá nos encontramos nus além dos limites

Da pele, ganhar tudo num momento em que se deita a perder

O pouco que se tem, olham-se as mãos vazias,

Cheira-se nelas ainda as entranhas oferecidas ao desejo,

À ilusão e logo se escondem numa vergonha

De intenso sol de manhã, contra a pela suja

Que nenhum banho lavará melhor que o esquecimento.

 

Turku

 

31/05/2024

 

João Bosco da Silva

 

sexta-feira, 24 de maio de 2024

 


Alva

 

Que sei eu filha, das linhas que unem as estrelas,

Só tenho a certeza dos teus olhos

E do abismo que um futuro encerra,

A vida é isto apenas e chega, um choro, um sorriso,

Tudo entre a primeira e a última vez de tudo,

Que os sonhos te levem sempre à primavera

E as flores te sejam testemunhas

Da pequena luz que te pulsa no peito.

 

24/05/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 23 de maio de 2024

 

Lento o Verde Regresso

 

Sorri verde o musgo como se a distância

De outros equinócios um esquecimento,

No granito sente-se ainda o peso dos dias curtos,

O céu parece ignorar o canto desesperado

Dos que fazem ninhos no que parece

O regresso de um outono, não fossem

As hepáticas desmentirem a cor do húmus,

Acabado de revelar como quem acorda

Depois de ter confundido o sono com a morte,

Secará também o charco, mas já os rebentos

Serão a promessa de mais uma queda.

 

28/04/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Caminhante


Encontrar na cadência inesperada dos solitários passos

O ritmo nos dedos que se resignam aos bolsos

As palavras como aves musicais nos cabos de alta-tensão

Agarram-se as pedras negras às circunvolucões das solas

Um remoer de versos enquanto não se puxa de um papel

De um momento precipitante onde se revela

A natureza verdadeira do silêncio e dos olhares.


10/05/2024


Turku


João Bosco da Silva